MARCELLO (Novela Perséfone - primeira parte da "Trilogia
Mítica" de Alma Welt)
Marcello
Primeira parte da Trilogia Mítica- (I)Perséfone), de Alma Welt
Acabo de regressar de Paris, onde expus minhas telas com relativo sucesso. Reentro em meu atelier, na região dos Jardins, com aquela saudade e a satisfação do retorno e do dever cumprido para comigo mesma... Entretanto, estou ainda sob o efeito de um acontecimento insólito que ocorreu nos últimos dias da minha estadia na capital francesa.
Estava eu numa soirée do Opéra, para assistir um grande evento, a ópera Carmen, numa montagem deslumbrante, a que tinha sido convidada por um casal de amigos brasileiros, cultores desse tipo de espetáculo, desde o nosso maravilhoso Municipal, por sinal, inspirado naquele teatro.
No Grand Foyer, entre toda aquela gente belíssima (o “tout Paris”, como se dizia em outros tempos), nos seus vestidos de “haut couture” e ternos impecáveis, de repente me vejo diante de uma espantosa escultura em bronze, instalada num nicho, representando uma mulher sentada, em movimento frenético, os seios nus, com uma perna encolhida e a outra pendente do pedestal, elegante apesar da fúria dos seus movimentos, com um braço semi estendido, a mão em movimento de sofisticada garra. A cabeça voltada, serpentes vivas nos cabelos como a Medusa, rosto irado, com a boca aberta num grito que quase se podia ouvir naquele Foyer. O vestido era leve sobre a pele, maravilhosamente drapejado no bronze. Um “chef–d’oeuvre” , sem dúvida nenhuma. Enigmática, clássica, bela, dramática. Senti uma pancada na alma, com o assomo de uma memória antiga, esquecida. Aproximei-me fascinada, para observar os detalhes e... procurar a assinatura . Encontrei-a na base da escultura, no pedestal, que era uma trípode( devia tratar-se portanto de uma Pítia ou pitonisa). Mas eu já sabia muito mais que isso, antes de encontrar a assinatura: MARCELLO. Eu sentia que conhecia cada detalhe daquela escultura, de uma maneira tão profunda, como se ela na verdade emanasse de mim mesma, de um passado remoto, desconhecido em mim. Que mistério era esse? Como podia ser isso?
Após o espetáculo, que assisti entre a perturbação e o devaneio, pedi ao casal amigo que me deixasse no hotel, não queria esticar a noitada. Eles ficaram decepcionados, queriam comentar a montagem, as vozes, a encenação original, que normalmente me deslumbraria, sendo uma das minhas óperas favoritas. Mas desculpei-me, pretextando um enorme cansaço, fruto das emoções acumuladas do meu vernissage e da experiência daquela noite. Não insistiram mais e deixaram-me no hotel, despedindo-se carinhosamente. Flora, minha amiga, tocou meu rosto na despedida, com um ar intrigado. Fez um gesto circular com o dedo ao retornar ao carro, como sinal para que eu telefonasse no dia seguinte.
Cheguei exausta, realmente, e lancei-me na cama após fazer desabar meu longo, calcado aos pés, na ante-sala da minha suíte. Adormeci logo, profundamente, para encontrar-me com o sonho que eu pressentia e que queria apresentar-se:
Vi-me num salão congestionado de pessoas elegantes, mulheres riquissimamente vestidas em amplos vestidos armados, e jóias faiscantes. Homens de casaca, abandonando suas cartolas e bengalas nas mãos de pagens, à entrada. Estes, vestidos com casacas vermelhas demodées e cabeleiras brancas de um século anterior (somente os pagens). Os homens, com colarinhos altos e casacas escuras, tinham uma sofisticada elegância, um dandysmo ostensivo. Alguns fumavam charutos em salões contíguos, para esse fim, afastados das senhoras. Estávamos em meados do século XIX, eu identifiquei. Eu acompanhava com o olhar, em meu sonho, uma mulher deslumbrante, saudada, cumprimentada por todos, cortejada, bajulada mesmo. Chamavam-na duquesa. De repente ouvi o seu nome na boca de um interlocutor: ADÈLE. Ela trocava palavras com homens e mulheres, com desenvoltura e “aplomb”. Percebia-se o seu grande cosmopolitismo. Demorou-se conversando sobre escultura com um homem maduro, sempre com economia de palavras, em frases curtas, evidenciando um certo mundanismo, como convém num ambiente social: sem discorrer. Tudo isso se apresentava e ficava claro, em meu sonho, como se eu descortinasse um fragmento de sua vida, que insinuava todas essas informações básicas, mas insatisfatórias. Tanto que acordei com uma sensação de vazio, de insuficiência, ansiando por encontrar-me novamente com aquela personagem. Que queria dizer isso tudo? Por quê ela se apresentara a mim através daquele sonho, após o impacto da minha descoberta de uma obra escultórica, no foyer do Opéra?
Chamo pelo interfone o petit-déjeuner no quarto, e quando este chega, para minha surpresa, vem acompanhado de uma corbeille de flores, lindíssima, com um cartão:
“Pour la demoiselle du Grand Foyer, l’admiratrice du Marcello, plus belle que la Pythie, et beaucoup plus suave,
le tribut de m’admiration, bien comme l’invitation pour un café.Je vous attendre, ici bas, dans le foyer, le temps que vous rendre nécessaire."
Fiquei excitadíssima com a surpresa e a idéia da pequena aventura psicológica de um encontro inesperado e tão galante. Somente estranhei um pouco a expressão “ici bas” que quer dizer “neste mundo”, e não simplesmente “aqui em baixo”. Tomei uma ducha rápida, naquele cabo que parece um telefone, que sai das banheiras deste país. Porque será que eles não fazem uma coisa mais prática, como nós? Sim, porque eu percebi que os franceses, agora estão se banhando com mais freqüência, talvez devido ao preço exorbitante dos perfumes. Ou a um aumento na temperatura média do planeta, devido ao efeito estufa. Será? Por falar nisso, como será o cheiro desse cavalheiro, que me espera lá em baixo? (Sorri, e fiz uma careta ao espelho, imaginando aquele ranço conhecido, de muitos dos franceses, misturado à sobreposição de perfumes acumulados).
Vesti-me rapidamente, passando o nosso bom desodorante brasileiro, que trago sempre comigo. Passo um escova rápida nos cabelos e saindo pego o elevador para o térreo. Ao abrir a porta, sinto-me logo observada e vejo um homem maduro, de têmporas brancas, aproximar-se. Ainda a uma certa distância, tive um novo impacto. Eu já vira aquele homem! Aquele semblante, aquelas têmporas, eu as reconhecia...do meu sonho! Adèle, a duquesa, falara com este homem sobre escultura, e ele, no sonho discorrera brevemente, com grande conhecimento. Era um escultor!.. no sonho. Mas, por quê? Por quê isso? O que está acontecendo?
Ele parou diante de mim, olhando-me fixamente nos olhos. Sua estatura mediana, sua testa alta, seu nariz muito grande, mas perfeito, os lábios finos e a ponta do queixo proeminente, faziam o retrato típico do intelectual francês. Cumprimentou-me beijando-me a mão que lhe estendi. Ele disse:
– Mademoiselle Alma, meu nome é Jean-Baptiste e considero um privilégio conhecê-la. Estive agora há pouco na galeria para ver as suas obras. Tiveram que abri-la especialmente para mim: fiz-me passar por um colecionador. Afinal, era um pouco cedo...Mas minha visita só confirmou a minha intuição ao vê-la ontem, no Opéra. A senhorita é uma grande artista, e uma escultora nata, que ainda não esculpiu. Seu senso de volumes e de espaço é notável, embora seu colorismo seja também bastante convincente...e exuberante, como se espera de alguém que vem dos trópicos. Mas surpreendeu-me, vindo de uma jovem loura como uma walquíria e com um sobrenome como o seu : Welt, não é mesmo? Mundo...Será o seu palco, sem dúvida, ou seu “salon”, melhor dizendo...Mas, venha comigo, vou lhe mostrar um café aqui perto, onde Cocteau costumava freqüentar com Marais, e onde muito antes, Baudelaire escrevia seus poemas numa mesa que ostenta ainda a sua assinatura, desconfio que falsa. O dono é um homem muito simpático, que adora artistas, como seus antepassados. Diz que seu avô foi dono do Album Zutique, muitos anos, antes de o leiloarem. Ali estava as “Cores das Vogais”, de Rimbaud, e tantas outras coisas. Bem, Paris é um repositório de estórias sem fim, menos apreciadas hoje, por essa geração americanisada . Você sabe, meu pai, deputado, pouco antes de morrer fez um projeto de lei que punha barreiras à invasão da cultura americana, na tentativa, a meu ver desesperada, de salvar a nossa. Foi tachado de fascista. Outro dia cheguei à casa de amigos casados e fui cercado por crianças de revólveres na mão, brincando de Matrix. Seria melhor, é claro, que estivessem vestidos de Astérix e Obélix, não é mesmo? Mas... estou tagarelando... não é meu feitio: a senhorita, por alguma razão, me deixa perturbado. Na verdade, já sei porquê...
Sorri, intrigada, e diante da cadeira que ele afastou, numa mesinha de calçada, olhei para dentro do tal café, desejando conhecê-lo por dentro. Jean-Baptiste, então, pegando-me no braço, introduziu-me no recinto, um tanto escuro, mas cheio de quadros, e apresentou-me ao gerente dizendo:
– Olá, Martin, esta é Alma, a artista, brasileira. Uma pintora de mão cheia. Soberba. Mas, seu patrão não está, não é mesmo? Queria apresentá-la.
– Bonne journée, mademoiselle – disse Martin—Je suis enchanté. Esta é uma casa de artistas, há gerações, sinta-se na sua. Querem ser servidos aqui dentro ou lá fora?
– Lá fora, Martin, está um pouco escuro aqui dentro para esta brasileira solar , não é mesmo?
Enquanto Martin olhava intrigado os meus cabelos louros, Jean-Baptiste levou-me de volta á mesinha da calçada comentando: —- Lá dentro há um Modigliani autêntico, trocado pelo pintor por bebida, com o avô do proprietário. Já ofereceram fortunas e o Laurent recusa-se a vender. Até o museu do Beaubourg quis comprá-lo. Mas o louco do Laurent acha que o quadro produz um certo sortilégio na casa e o mantém no escuro, quase invisível. Como disse, esta cidade é cheia de estórias e idiossincrasias. Na verdade estou farto e sonho todos os dias com praias tropicais que não tenham sido pintadas sequer por Gauguin. É irônico, para mim, conhecer uma brasileira branca e loura como uma alemã, como você. Os trópicos fogem de mim, e acho que não sobreviverei a mais um inverno parisiense, se não conseguir escapar a tempo.
Observei Jean-Baptiste, sua palidez típica, enquanto ele acendia um cigarro. Pensei comigo: “é isso que vai acabar com você. Cigarro e céu escuro, de chumbo, são uma fórmula mortal...” Disse-lhe:
– Jean, venha ao Brasil, mostrar-lhe-ei nossas praias, se você parar de fumar. Essa é a condição.
Jean Baptiste olhou-me surpreso, desconcertado. Apagou o cigarro no cinzeiro, pedindo desculpas, meio atrapalhado.
Dei uma risada e disse: —-Jean-Baptiste, bastou uns minutos em sua companhia, para eu tomar essa liberdade de criticá-lo. Desculpe-me. Mas é para seu bem. Você me parece um tanto pálido e ansioso por sol e saúde. Fale-me de você.
Jean-Baptiste olhou em volta, depois nos meus olhos, abaixou os seus e disse:
– Alma, sinto que já a conheço, há muito tempo. Bastou vê-la no Grand Foyer e isso não me sai da cabeça. A sensação de conhecê-la... profundamente. Porque? Nunca conheci uma brasileira antes, embora sonhe com as praias do Brasil, o Rio de Janeiro, você sabe...Uma vez vi um documentário de Carnaval e pensava que todas as brasileiras eram negras. Atraí-me profundamente pelo Samba, aquele ritmo, aqueles passos. Também pela pele escura das mulheres e homens, que me lembram os bronzes da casa de meus pais, mas somente na cor, certamente. Aquilo tudo são deuses e deusas gregos, não sei porquê fazem uma pátina tão escura. Enfim, é tudo convenção... e tradição. Você sabia que os gregos pintavam suas estátuas de cores vivas? A cor não resistiu ao tempo. Bem, é uma teoria... não é seguro. Mas, estou divagando. O fato é que estou um pouco confuso com a emoção que sua pessoa me causa, desde ontem. Tive um sonho esta noite... não sei se devo contar...
– Conte, Jean, eu lhe peço. Também tive um sonho estranho em que... mas depois conto-lhe o meu. Fale, fale.
– Bem, após a minha visão de você, no Foyer, quase me aproximei. Você estava tão linda, admirando aquela escultura com uma atenção que não se vê por aí... Percebi que você estava profundamente emocionada, o que é raro de se ver nesta cidade de blasés locais e turistas levianos. Você parecia querer tocar e acariciar aquela estátua e seus dedos pairavam, percorrendo algumas formas, sem tocá-las. Na verdade, fez bem em não fazê-lo pois havia um guarda do Opéra que a vigiava, pronto para dar o bote. Ai de você, se o tivesse feito: nós franceses somos muito agressivos com certas coisas, e intolerantes. É disso que estou farto...entre outras coisas. Bem, como dizia, fiquei observando-a e me senti comovido também, de uma maneira extraordinária, eu, que já nem reparava mais nessas estátuas... Mas era o confronto... você sabe, você e a estátua, a sua relação com ela, que me comoveu. Se eu tivesse me aproximado naquele momento( e eu tinha um bom pretexto), o encanto teria se partido. Eu quebraria a relação, interromperia o ato mágico. Fiz um esforço para não abordá-la. Preferi segui-la disfarçadamente, de automóvel, até a porta do seu hotel. Esperei uns minutos e com um pretexto, fui ao balcão da recepção e consegui, com um pequeno suborno, a informação sobre a moça loura que estava ali hospedada. Uma brasileira! E artista! Chamada Alma! Soube que expunha na galeria Miroir d’Art, de propriedade de uma outra brasileira., chamada Ceres. Fui para casa, ansioso pelo dia seguinte para visitar sua Exposição. Mas tinha medo de me decepcionar. Adormeci, afinal, e sonhei o seguinte:
Eu estava no recinto de um enorme atelier, envidraçado parcialmente por cima, diante de um molde em gesso de uma escultura complicada. Um conjunto de figuras que representava um velho, sentado, com crianças de sexo masculino agarradas ás suas pernas, em agonia, enquanto ele, o velho, parecia roer os próprios dedos. O gesso era todo desmanchado, rebocado, espatulado como um esboço, expressionista avant-la-lettre, de uma dramaticidade extrema. Reconheci o tema de Ugolino, da Divina Comédia de Dante (o conde condenado à morte pela fome, juntamente com seus filhos). De repente, aproximou-se de mim uma moça belíssima, com cabelos pretos e pele muito branca, elegantíssima em seu amplo vestido, e começou a cobrir-me de elogios pela minha obra (Dei-me conta, ao acordar, que eu seria o escultor, o autor daquilo). Ela pousou a branca mão no meu braço respingado de gesso e eu a tomei nos braços. A emoção fortíssima que me tomou, fez-me acordar, frustrado. Daria tudo para continuar aquele sonho. Tentei voltar a dormir para continuar daquele ponto, mas foi em vão: eu acabava conduzindo por vontade cenas que não pareciam verdadeiras, não era mais real como o sonho. Você sabe, Alma, sou psicanalista, esqueci-me de contar isso. Nós, desde Freud, seguimos seu axioma: O SONHADO SÓ SE REFERE AO SONHADOR . Na verdade, sou seguidor de Jung, que mais que todos concorda com isso com o mestre com o qual rompeu, embora ele abra exceções para grandes sonhos coletivos, arquetípicos, em geral tribais. Visto isso, estou inclinado a crer que a mulher do sonho era a minha Anima, enquanto o escultor, certamente era eu em minha totalidade relacionando-me com minha Anima diante da minha vida, isto é, a criação artística que tinha como tema , o pai, impotente diante da carência básica de seus filhos. Que filhos? Eu mesmo e meu irmão, em nossa infância faminta de afeto, diante de um pai responsável , mas severo e avarento. Entretanto, acordei associando a imagem feminina do sonho à moça, que eu vira no Opéra, e que embora loura, tinha nítida semelhança de traços, e sobretudo de atitude admirativa diante da obra de arte. Ou seja, você.
Quando soube seu nome, tive mais um impacto. Você entende, Alma?
Fiquei tremendamente emocionada. A imagem de Jean-Baptiste em meu sonho, o escultor com quem a moça conversava no salão, em alegre camaradagem, pareceu-me mais nítida. Era ele, sem dúvida. Tratava-se de saber o nome completo do escultor, já que o da a moça do seu sonho deveria ser o mesmo que eu ouvira no meu, isto é: ADÈLE.
– Jean-Baptiste, tudo isso é notável. Há grandes coincidências em nossos sonhos. A mulher que eu seguia por imensos salões, conversando sobre Arte, era também morena, de pele clara, e conversava sobre escultura com um homem idêntico a você. Pareciam ser muito amigos. Havia um certo carinho em suas atitudes. Quando o vi no saguão do hotel, tive um choque de reconhecimento. Mas, estou pressentindo agora o significado de tudo isso. Creio que será fácil descobrirmos o sentido dos nossos sonhos...e do nosso encontro. Vamos procurar uma biblioteca. A Bibliothèque Nationale, de preferência, que deve ser mais acessível que os arquivos do Louvre, imagino. Adoro pesquisas. Vamos começar logo?
–Também creio que será fácil, Alma. Nem precisamos ir á Bibliothèque Nationale. Na casa de meu pai, na sua biblioteca, há o Bénézit. Deixe-me dar um telefonema. Sou um pouco cerimonioso com a viúva, minha madrasta. Aguarde-me, volto logo.
Estranhei um pouco ele não ter, aparentemente, um celular consigo, para ligar dali mesmo, da nossa mesa, mas logo compreendi que ele queria privacidade nessa ligação, pois não se dirigiu sequer ao interior do Café e sim a uma cabine telefônica ali perto. Voltou logo, satisfeito, dizendo:
– Alma, falei com Corinne, minha madrasta, que simpatiza comigo, na verdade bem mais do que o velho, outrora. Foi muito receptiva ao telefone. Pode receber-nos com prazer, ela disse, agora mesmo.
Jean-Baptiste pagou a conta adicionando o “pour-boire”, e nos dirigimos para uma ruela próxima onde estava estacionado seu automóvel. Dirigimo-nos para um bairro chic, na Rive Droite, muito arborizado e paramos diante de uma grande mansão, um verdadeiro chateau, em estilo neo-clássico. O grande portão de ferro se abriu, misteriosamente, pois Jean não precisou anunciar-se. Subimos a alameda de cascalho e paramos diante da escadaria, onde nos esperava uma bela senhora de lindos cabelos brancos tratados. Notei-lhe o olhar intenso e extremamente inteligente. Examinou-me rapidamente, mas com simpatia. Após os cumprimentos e a minha apresentação, fomos introduzidos. Jean-Baptiste conhecia bem a mansão, naturalmente. Afinal, era a casa de sua infância e juventude. Observei rapidamente que a casa era cheia de esculturas de bronze por todo lado. Havia também algumas de mármore branco de Carrara. Sempre clássicas, belíssimas. Grupos, figuras solitárias, bustos, tudo. Figuras mitológicas e históricas, nus e algumas até, de animais. Algo que merecia uma visita especial. No entanto tive de acompanhar Jean-Baptiste até a biblioteca-escritório. Por alguma razão meu coração doía, eu não sabia porquê.
Jean-Baptiste foi direto a uma estante onde se encontrava o Bénézit, no mesmo lugar desde a sua infância. Reparei que eram oito volumes, mas logo a minha atenção foi atraída para uma estatueta de bronze, que estava sobre a mesa de trabalho ou leitura. Tratava-se de um retrato de Liszt, belíssimo. Estremeci ao reconhecer no pedestal a assinatura MARCELLO. Dei um pequeno grito de surpresa e prazer, que atraiu a atenção de Jean. Ele voltou-se, já com um volume na mão . Eu apontei–lhe a estatueta, exclamando:
– Jean, Jean, é um MARCELLO!
Jean sorriu, respondendo:
– Sim, Alma, nós costumávamos, meu irmão e eu, usar esta escultura para quebrar nozes sobre a mesa na época do Natal. Pobre Liszt. Devia tremer no túmulo. Eu sabia que era um Marcello. Mas nunca me ocorreu, naquela época, conferir no Bénézit, quem era esse escultor. Era um santo de casa, não fazia milagres. Apenas um quebra-nozes. Vejamos agora: Marcello, voir Castiglione-Colonna ( duchesse Adèle de).
Jean depositou o volume de letra M e retirou o de letra C. Lá estava:
“ Castiglione-Colonna ( duchesse Adèle de) née d’Affry, dite Marcello, sculpteur et peintre, née a Fribourg ( Suisse) le 6 juillet 1836, morte à Castellamare le 16 Juillet1879 ( Ec. Ital.)
O seu verbete, não muito longo, falava naquele busto de Liszt (o que me comoveu) e na sua Pythia ( adquirido por Garnier no Salon de 1870, para o Grand Foyer du Opéra de Paris). Falava também na sua criação de um museu próprio, o Museu Marcello, incorporado depois pelo Museu de Fribourg, na Suissa. Imediatamente projetei visitar com Jean ou sozinha, aquele museu.
– Jean, Jean -disse eu- Marcello é uma mulher, Adèle D’Affry, duquesa Castiglione-Colonna. É como se eu já soubesse disso, não sei porquê. É ela, Jean, que eu vi no meu sonho! Andando por aqueles salões, linda, rindo e conversando com os homens, mais do que com as mulheres...conversando com você.. digo, com o escultor que se parecia com você. Eles pareciam tão íntimos, havia tanta camaradagem, um certo carinho até... não sei. Devo estar imaginando... Não sei mais onde acaba meu sonho e começa minha imaginação. Jean, Jean , o que quer dizer tudo isso?
Jean-Baptiste também estava emocionado e com um certo brilho molhado nos olhos, respondeu-me:
– Alma, lembra-se da frase de Jung: “ O sonhado se refere ao sonhador” ? Adéle era você. Se não você não a teria visto antes de saber de sua existência ... Foi uma reminiscência, Alma, algo de que a sua alma se recordou. Um fragmento, um episódio do cotidiano de Adèle, em sua glamurosa vida. Isto está claro, agora. Quanto a mim, devo ser, no seu sonho, o amigo de Adèle, o mesmo escultor que vi em meu sonho, no meu próprio atelier, e em cujos braços Adèle caiu. (Jean ofegava cada vez mais, comovido) -Alma, Alma,eu já a amava como Adèle, é isso!..perdoe-me .( Jean se retraiu subitamente envergonhado com o seu derramamento ).
Enterneci-me, e pousei minha mão no seu braço. Ele permaneceu extático, com o olhar brilhante, fitando-me ardentemente.
– Jean, devemos investigar mais um pouco-( eu também estava ofegante )- Isso tudo é muito estranho. Nunca antes eu tinha ouvido falar nessa escultora, no Brasil. Eu sei, por isso mesmo... Fui atraída por uma escultora clássica. Eu, uma pintora moderna e brasileira, ainda por cima. Não faz sentido...Por outro lado, ela me atrai poderosamente. Eu quase me identifico...com ela. Porquê? Porquê? Aquela Pythia é tão violenta, o contrário de mim como mulher. Mas as formas, a obra em si, me atrai como se...eu pudesse tê-la feito? Não, não, isso é loucura! Não quero pensar nisso. Tenho mêdo...
– Alma, você fingiu não ter me ouvido. Eu já disse e agora repito: eu já a amava como Adèle. Isso está bem claro para mim. Preciso saber somente que escultor era esse, que eu fui... e que você amou também. Não, não fuja, Alma. Não premeditei nada disso, também estou perplexo. Mas disso não recuo mais: eu a amo, Alma, agora e sempre, desde aquela época. E não me permitirei perdê-la novamente, por um século e meio.
Eu estava quase desfalecendo. Queria fugir dali, ou atirar-me em seus braços, mas algo me impedia. O romanesco da situação era tão intenso, que me revoltava e exigia minha ponderação. Disse-lhe:
– Jean, algo me impede de envolver-me assim , abruptamente como você quer. Preciso saber mais. Quem era Adèle, afinal? Quem sou eu? Já não sei mais. Porquê Liszt sempre me atraiu tanto? O que foi ele para Adèle? Sinto que preciso saber tudo. Agora leve-me ao hotel, eu lhe peço. Não posso mais com essas emoções, sinto que se permanecer, vou acabar desfalecendo. Vamos, leve-me agora.
Nesse momento, voltamo-nos para a porta e vimos que Corinne, a madrasta, nos olhava intensamente. Ela falou:
–Perdoem-me ouvir o final de sua conversa. Estou também impressionada . Permitam-me que os ajude nessa pesquisa. Há outros Marcello pela casa. Como aquela Bacante Exausta, lá no salão. Era um dos escultores preferidos do seu pai, Jean, você deve saber disso. No fim da vida ele teve um breve namoro com a escultura de Camille Claudel, mas que não substituiu sua preferência. Afinal, seu pai apreciava o clássico, sobretudo. Mas ele nunca se referia a Adèle, era sempre Marcello. No entanto ele sabia tudo sobre seus escultores. Seu pai era um homem muito culto, você sabe. Um erudito, mesmo. Mas... deixem o resto da pesquisa comigo ou deixem-me participar dela. Preciso de distração. Desde a morte do meu marido convivo com estes fantasmas. Agora vejo que eles podem ter um novo interesse. Vou xerocar o verbete imediatamente, para vocês e para mim, está bem? Agora vou levá-los até o carro. Alma não está se sentindo bem. Quer alguma coisa, querida? Um chá. Ou uma taça de vinho?
Fiquei imensamente grata a Corinne. Ela me abraçou carinhosamente, quase como uma mãe. Aninhei-me por uns segundos, em seu peito. A simpatia dessa mulher me cativara. E ela estava ali por alguma boa razão, eu intuía. Aceitei um copo de vinho que tomei um pouco avidamente e dirigi-me para a porta. Antes quis ver a tal Bacante. Aquilo acabou de me exaurir. Despedi-me de Corinne. Pensei naquele momento que não a veria mais. Entrei no carro e partimos. Durante o trajeto preferi o silencio, que Jean-Baptiste respeitou. Deixou-me no hotel e partiu um pouco frustrado. Certamente queria que eu lhe tivesse caído nos braços como no seu sonho.
No quarto do hotel, atirei-me sobre o leito e adormeci um sono de pedra, sem sonhos.
De manhã bem cedo o telefone tocou na minha cabeceira. Era Jean-Baptiste que me saudava com entusiasmo, logo comunicando:
– Alma, já sei o nome do escultor. Foi muito fácil identificá-lo pela escultura do Ugolino. Corinne encontrou-a num livro, ela fez um bom trabalho de pesquisa: seu nome (pasme) era Jean-Baptiste Carpeaux, um grande nome da escultura francesa do século XIX. Adèle deve tê-la admirado enormemente, e a ele pessoalmente, também. Sei que eles se amaram... embora ele fosse bem mais velho que ela. Ela morreu relativamente jovem, aos 43 anos, de tuberculose, quatro anos depois dele. Era tida como uma das mais belas e fascinantes mulheres do século, e de longe, a maior escultora. Jovem viúva, talentosa , bela, encantadora, titulada e rica. Ela tinha tudo. Uma diva. Uma musa. Ela se considerava a reencarnação de Bianca Capello, uma femme-fatale da Renascença. Ela admirava ou se identificava com a Górgona e com Ananke, a personificação do Destino. Alma, necessito vê-la, logo, você está me ouvindo? Alô, alô, Alma, deixe-me vê-la ou enlouquecerei.
Eu ouvia em silêncio e respondi: —- Jean, está bem , espere-me naquele Café. Naquela mesma mesa, está bem? Mas somente dentro de uma hora . Como? Está bem, 40 minutos. Tomaremos o café da manhã ali, mais uma vez. A última? Não, não disse isso, calma, Jean. Aguarde-me , sim?
Em quarenta minutos cravados estava eu naquela mesa, em frente a Jean, que pusera um uma flor num copo, comprada de um garoto na rua . Isso me fez lembrar o Brasil. Ai, que saudade do meu atelier nos Jardins, na rua Oscar Freire...Jean devorava-me com os olhos, e tentou segurar-me as mãos sobre a mesa. Recolhi-as disfarçadamente. Na verdade estava envolvida com ele, não por ele. Não me sentia apaixonada...Havia um espectro entre nós, eu sentia. Mas não sabia o nome desse espectro. Era isso certamente o que mais me perturbava. Jean começava a delirar, já não conseguia mais se conter e declarou-se loucamente apaixonado por mim, antes mesmo do café da manhã ser servido, tirando-me totalmente o apetite. Como podia eu sorver o café com leite e tudo mais, diante daquele olhar febril? Perdoem-me, estou sendo irônica com o pobre Jean. Mas eu sentia que precisava me defender. Não posso me entregar assim ao primeiro escultor do século XIX que me declare a sua paixão( aqui vou eu, novamente...)
– Adèle, Alma, case-se comigo. Eu irei ao Brasil com você. Comprarei um grande atelier para você no campo, na praia, onde você quiser. Deixe-me fazê-la feliz. Eu me dedicarei a você e à sua arte, para sempre!
– Jean – disse eu — você está sendo precipitado. Você mal me conhece, não sou Adèle, sou Alma, e sou uma provinciana, uma brasileira. Não se deixe iludir por esse sonho. Depois, quem lhe disse que eu não sou feliz? Sou, e muito! Essa é uma qualidade de que não abro mão. Teria muita vergonha de ser infeliz. A infelicidade, estou convencida, é falta de virtude. É a presença dominante de defeitos de caráter. As coisa boas não produzem dor e... (calei-me, eu estava divagando, começava a exagerar, eu estava me defendendo, racionalizando, pontificando.)- Bem, Jean, não é nada disso. Deixe-me pensar. Preciso respirar, tudo isso é tão espantoso e precipitado! Preciso de mais tempo. Vamos continuar a nossa pesquisa, sim? Preciso entender porquê me atraí pela Pythia, porquê sonhei com Adèle, antes de saber quem era Marcello, porquê você sonhou com ela também, e porquê, sobretudo, a estatueta de Liszt agora não me sai da cabeça.
– Alma, -disse Jean- vou pedir aquela estatueta à Corinne. Sei que ela não vai me negar. Mas não sei se a darei a você ou vou direto jogá-la no Sena. Tenho ódio agora dessa estatueta. Parece que ela me afasta de si. Bem que ela sempre esmagava o pequeno cérebro das nozes... Ela continua, agora, esmagando o meu. Perdoe-me, estou sendo ridículo. Preciso conter-me.
Olhei-o nos olhos. Ele estava quase delirante. Aquilo me incomodava. Pedi licença para ir ao toilette. Martin saudou-me com a cabeça e apontou-me o reservado. Aproveitei para olhar o Modigliani de perto e admirei-lhe o maravilhoso nu reclinado. Agradeci a Deus por ser mulher e também bela como essa. Esse pensamento me equilibrou novamente e me deu forças. Pude pensar em Adèle enquanto fazia xixi, voluptuosamente. Ela estava muito próxima, eu a sentia cada vez mais. Senti-me apaixonada por uma Adèle apaixonada por... Liszt! Essa é que era a verdade. A beleza do rosto de Liszt! A perfeita mistura de virilidade e doçura, do masculino e feminino, nunca antes tão bem dosados num rosto masculino. Perto dele, Napoleão e Julio César tinham rostos desequilibrados, excessivamente aquilinos ou ligeiramente femininos, não sei ao certo. Liszt deveria estar próximo também, já que me sentia apaixonada novamente por ele. Novamente, eu disse? Que sei eu? Preciso saber mais... Ou já sei tudo? Arre! Estou exausta de tanta ambigüidade, tantos mistérios em minha alma.
Enxuguei-me com prazer e voltei á mesa sem lavar as mãos. Não sei porquê fiz isso. Sou uma fêmea, queria eu demarcar meu próprio corpo como território? Que idéias absurdas percorriam-me a cabeça! Jean-Baptiste beijaria minhas mãos...
Quando retornei, não encontrei mais Jean na mesa. Havia um bilhete sob a xícara de café:
“Alma, perdoe-me, não estou suportando. Preciso retirar-me da sua presença, pois estou sofrendo demais. Sua rejeição está me matando, e isso não é uma chantagem. Sinto-me morrer à míngua , como Ugolino. Aguardarei à distancia o tempo de reflexão que você está me exigindo. Perto, sou capaz de fazer uma tolice, ou de devorar minhas próprias mãos. Ligue-me quando tiver chegado a uma conclusão definitiva. Só não me ligue para dizer “não”. Prefiro esperar o resto dos meus dias .”
28/05/2006
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O Retorno de Adèle
Segunda parte da Trilogia Perséfone, de Alma Welt
Ceres liga-me, de Paris e pede-me o meu retorno para tratarmos de uma espécie de turnê da minha Exposição, por outras cidades da Europa, até mesmo algumas capitais. Dou pulos de excitação e alegria, com a cabeça a mil, fazendo planos. Penso que será a oportunidade de dar uma esticada ao Museu de Fribourg, na Suissa, para ver o acervo do antigo Museu Marcello.
Na verdade, não deixei mais de sentí-la dentro de mim, a ela, Adèle D’Affry, a duquesa Castiglione-Colonna. Ela está presente em estranhas inquietações e devaneios, e também numa espécie de sensualidade malévola, que tenho agora de reprimir, em relação aos homens e mulheres que se envolvem em minha vida. Por quê Adèle tem isso? Uma tendência dispersiva no amor, uma indiferença destrutiva, embora involuntária, aparentemente ingênua. Não quero ser assim... Respeito demais o ser humano, e isso, nela, me horroriza. Será a presença daquela Bianca Capello, por sua vez,. dentro dela? Uma “femme fatale da Renascença”... lembrei-me das palavras do pobre Jean-Baptiste. Como estará ele? Minha indiferença, voltando ao Brasil, sem mais procurá-lo, espanta a mim mesma, agora , ao pensar nisso.
Começo a arrumar as malas e a tratar da passagem e do novo visto no passaporte. No consulado francês, fui tratada com deferência especial ao verem o catálogo da minha exposição. Outro nível, estes franceses, esta é que é a verdade. Também, estou encantada com os prognósticos, e essa alegria e otimismo ilumina meu rosto, abrindo-me todas as portas.
Afinal, no dia e hora marcados, estou no avião a caminho de Paris. Durante a viagem, uma moça, francesa, de retorno de férias no Brasil, sentada ao meu lado, puxa conversa, com uma simpatia incomum nos franceses. Diz-se encantada com os brasileiros, em sua temporada no Brasil, e pergunta-me, sempre em francês, se estou voltando para a Alemanha. Sorri, e digo-lhe que não, sou apenas descendente de alemães de Santa Catarina, por parte de pai. Ela lamentou não chegar até o extremo sul do nosso país, desta vez, prometendo a si mesma, voltar. Logo põe-se a contar uma espécie de romance que teve com um baiano, em sua estadia em Salvador, e o encantamento com a cultura afro-brasileira daquela cidade. Os franceses ficam doidos com aquilo, o verdadeiro exotismo brasileiro, que tanto procuram. Lembrei-me de Gauguin, no Tahiti, procurando a alma primitiva em si mesmo... e quase encontrando, apesar de tudo... Apesar de sua vitimização nesse processo. A propósito, contei a Annie, a belíssima cena de uma versão cinematográfica americana, da vida de Gauguin, em que , diante de sua filha Aline, na Dinamarca, retornando do Tahiti, durante uma dolorosa visita à sua família, o pintor é perguntado pela menina:
– Papai, o que é um gênio?
E o pintor responde: –“ Filha, um gênio é um homem que faz algo extremamente necessário à humanidade, algo de que ela não pode prescindir.”
E Aline, então:–“Você é um gênio, papai?”
Gauguin, após uns segundos, respondeu:–“Não sei, filha, acho que estou tentando ser...
E Aline: –“ Papai, eu posso ajudar você nisso? Posso, papai?”
Então Gauguin, com um brilho úmido nos olhos, disse:
–Pode, Aline, você pode.
–Como, papai, como?
—“Basta que você, quando tudo estiver muito ruim... quando nada parecer estar dando certo comigo, quando ninguém mais acreditar, você continue acreditando em mim. Sempre acreditando... Você estará me ajudando.”
Caí em prantos, de repente, abraçada por Annie, que com os olhos úmidos também, naquele momento decidiu ser minha amiga para sempre, eu senti.
Depois deste derramamento, em que expus precipitadamente a minha alma de artista, resolvi conter-me e prestar mais atenção a essa francesinha, que me conta uma perturbadora aventura tropical, encerrada após uma procissão marinha da Nossa Senhora dos Navegantes, ou Iemanjá, em que diante da impossibilidade de pertencer totalmente ao universo do seu amante baiano, recuou ante a visão assustadora de tantos Orixás naquela alma, e repeliu-se a si mesma dos braços daquele príncipe negro, que a engolfavam como um abismo. Voou para São Paulo, como uma transição, antes de retornar à sua antiga Gália, agora, neste avião.
Eu tinha tanto que dizer-lhe, sobre tudo isso , mas preferi deixá-la com suas próprias conclusões, talvez mais apropriadas. Tanto mais que ela me passava a impressão de guardar uma outra paixão, esta sim, grande e dolorida, anterior, e que nada tinha a ver com a sua aventura tropical, que teria sido pura tentativa de escape. Minha alma é também tão confusa, e mais ambígua ainda em suas heranças: germânica, brasileira e ainda portuguesa, por parte dos antepassados maternos... Sem falar naquela Adèle, suissa, com sua carga de paixões e de amores passados, que sinto carregar dentro de mim, como um segredo que por enquanto manterei, exceto para os meus invisíveis leitores.
Sinto que posso me confrontar com ela, em pessoa, de algum modo, e que tudo me prepara para isso, inexoravelmente. Claro, não sei prever como ou quando isso se dará, mas...
Ao pousarmos em Orly, Annie agarrou-se a mim, e afirmou não querer mais perder-me de vista e fazer questão de me acompanhar até o meu hotel em Paris e de dar-me o seu endereço. Dizia que a minha amizade era agora vital para ela.
Após a viagem de Orly até Paris, em que tornamo-nos mais íntimas, despedimo-nos com um forte e estranhamente comovido abraço, no saguão do hotel, ela prometendo procurar-me logo no dia seguinte, para levar-me a conhecer sua família, e almoçar, com eles.
Depois de um repouso no meu quarto, o mesmo em que estive da outra vez, começo a ordenar os pensamentos e a fazer planos. Organizo a pasta de novos desenhos e idéias, para mostrar para Ceres, na Galeria.
De repente, penso, sem querer, em Jean-Baptiste, e tenho a tentação de procurá-lo, embora isso seja arriscado, pois não sei se suportarei o seu assédio novamente... ou a ausência dele. Essa ambigüidade me envergonha, parece vir da alma de Adèle, dentro de mim. Que quero eu, ou ela, do pobre Jean? Atormentá-lo mais ainda? Por quê, toda a vez que estou com ele, penso em Lizst? Justamente para me afastar dele? Hei de tirar tudo isso a limpo, agora, nesta temporada em Paris. Creio mesmo, que só por isso retornei, na verdade, e que as exposições são mais um pretexto que qualquer outra coisa.
Telefono para a Galeria e falo rapidamente com a filha de Ceres, cuja voz me soou familiar. Uma jovem que não conheço, meio distante. Terá ela uma alma brasileira? Sendo o pai francês, e tendo nascido e sido criada aqui... Bem, não vem ao caso. Marco encontro a uma determinada hora na Galeria, mas penso antes passar na livraria Erebus para procurar um livro sobre Adèle, e sobre Jean- Baptiste Carpeaux, se possível.
Chego na livraria com bastante antecedência da hora do meu encontro para justamente poder procurar à vontade, e pesquisar.
Qual não é a minha surpresa quando, de repente, ouço a sineta da porta soar e vejo Jean-Baptiste entrar, um cigarro na boca, meio curvado como sempre, e dirigir-se ao livreiro dizendo:
— Olá, Bertrand, encontrou o livro que lhe encomendei? Tem que ser ilustrado, lembra-se? Meu ensaio está adiantado, mas preciso daquela ilustração, urgentemente.
— Não, Jean, ainda não encontrei-o . Eu lhe disse que o avisaria, assim que o encontrasse. Que impaciência, Jean! Vocês escritores pensam que a literatura se faz em seis dias. Enquanto isso, veja este livro que garimpei, sobre escultores, escrito, veja, por seu pai, ainda antes que você nascesse. Pena que as ilustrações são muito mal fotografadas. A técnica desse tipo de fotografia, para realçar os volumes, ainda era muito ruim naquela época. O que se poderia fazer hoje, com um acervo assim, hem? Reconheço algumas obras da sua casa. Elas ainda estão lá? Bem, você não mora mais lá, há muitos anos, mas Corinne não vendeu nada, não é mesmo? A propósito, ela esteve aqui, fazendo uma pesquisa sobre uma escultora, acho que a mesma em que você está interessado. Vocês estão juntos nisso? Que mulher a sua madrasta, hem? Lembro-me dela moça ainda, uma verdadeira beldade. Foi um caso de amor tórrido, entre eles, não é mesmo?
Eu ouvia atrás de uma estante, com o coração batendo forte. Nesse momento, não agüentei mais e saí daquele corredor e aproximei-me do balcão onde os dois conversavam. Jean-Baptiste deixou cair o cigarro da boca, que, na verdade estava apagado, pois não seria permitido entrar fumando ali. Arregalou os olhos e agarrou-me puxando-me para si. Abraçou-me com tal força, que quase me sufocou.
–Alma, Alma, você... não acredito. Você voltou! Você voltou!
–Sim, Jean, mas não esperava jamais encontrá-lo tão facilmente, assim...
Ouvi a conversa de vocês. Pelo jeito você continua perseguindo...digo, procurando Adèle, não é mesmo? Bem, eu também, esta é que é a verdade.
–Mas, Alma... bem, essa é Alma, Bertrand. Uma artista brasileira, notável...e uma grande amiga. Adeus, Bertrand, ponha o livro do velho na minha conta. Depois nos falamos. Preciso conferir com Alma alguns pontos da minha pesquisa. Depois lhe explico.
Mal tive tempo de estender a mão para o Bertrand, e fui puxada para fora por Jean-Baptiste, excitadíssimo, que queria logo sentar-se comigo naquele café, naquela mesma mesa de sempre.
Dirigi-me primeiramente ao interior para cumprimentar o Martin, que foi menos efusivo do que eu esperava. Na certa já me considerava uma destruidora de corações, tendo o Jean-Baptiste lhe confidenciado alguma coisa, deduzi. Os homens são assim... quando são bons. Dei uma olhada no Modigliani, e voltei à mesa onde Jean-Baptiste já se sentara, agitado, mas tentando se acalmar.
–Alma, Alma, você aqui , novamente, devo estar sonhando. Queria tanto revê-la, sonhei tanto com isso! Queria me desculpar por aquele bilhete idiota... pela minha fuga. Agi como um covarde. Tinha tanto medo de sofrer, mais do que já estava sofrendo. Mas não quero aborrecê-la, falando naquilo. Alma, como você está? Maravilhosa, estou vendo. A julgar pela sua aparência, você deve estar feliz, como sempre aliás...Sabe, Alma, isso é o que eu mais admiro em você. Essa sua alegria tranqüila, essa candura... numa mulher tão inteligente.
—Ora, Jean-Baptiste, não vá começar a lisongear-me, que a vaidade é o meu principal defeito, e caio na sua armadilha a torto e a direito. Mas aceito suas desculpas e até agradeço, na verdade, aquela sua fuga, pois eu precisava também de um afastamento para poder coordenar os pensamentos... e os sentimentos.
–Então, Alma. Fazem já seis meses que nos despedimos e de lá para cá, minhas pesquisas não progrediram muito. Corinne encontrou mais uns dados sobre você, digo, sobre Adèle, e também sobre Carpeaux, mas nada que resultasse numa grande revelação consoladora. Não estive no Museu Marcello, tinha esperança no seu retorno para visitá-lo em sua companhia. Mas encontrei um catálogo de suas obras, fantástico. À propósito, Corinne me presenteou a estatueta de Lizst, que tenho agora em meu consultório, sobre a mesa. Outro dia, comprei um dos primeiros sacos de nozes da temporada, para quebrá-las com ela, em sua honra, quando você pisar no meu consultório, pela primeira vez. Depois farei você deitar-se no meu divã, freudiano por sinal, nada junguiano, e hei de ouvi-la num fluxo espontâneo, de confissão, para entender uma ou duas coisas misteriosas, para mim, a seu respeito. Que tal? Não? Está bem, estou brincando. Na verdade você não poderia jamais ser minha analisanda, estou envolvido de outra forma. E depois, nunca se
viu uma pessoa feliz, no analista, não é mesmo? Não, não estou sendo irônico, é o que eu acho, mesmo. Mas Alma, fale-me de você .
–Jean, depois daquilo tudo que se passou conosco já não sou mais a mesma. Adèle parece estar subindo, devagarinho, e tenho medo dela me tomar por inteiro. Isso é assustador, pois ela me parece muito diferente de mim, quero dizer, do que eu suponho que eu seja. Adèle é cruel com os homens, embora apaixonada como eu. Ela parece não se importar com o sofrimento deles. Enfim, é uma lilithiana, enquanto eu sou uma filha de Eva. Tenho horror à crueldade, à indiferença, à destruição. Vejo agora, claramente o porquê daquela Píthia, do Marcello, no saguão do Opéra. Aquela pitonisa está claramente rejeitando um devoto, bloqueou a trípode sentando-se nela, ameaçando-o com sua garra no ar. Não, não quero ser assim em minha alma.
Na verdade, vim para revê-lo, Jean-Baptiste, e deixar-me levar pelos acontecimentos. Mas antes preciso rever Corinne. Ela apareceu-me, recentemente, num sonho, chamando-me enquanto eu ouvia um espantoso canto de sereias, amarrada como um Odisseu de saias, a um mastro. Como Euricléia, na Odisséia, a voz dela dizia que você corria perigo, pois era assediado por uma Fúria, disfarçada de pretendente feminina, em torno de uma Penélope de calças, que era você. Eu sei, é confusa essa inversão de papéis, e até um pouco ridícula, mas o sonho era assim. Passei a dar-lhe mais valor em minha alma, Jean, por isso vim pedir-lhe que me perdoe e...
– Alma, Adèle. Sim, sim, venha comigo. Meu consultório fica aqui perto e podemos ir a pé, chega de viagens, nada de veículos, muito menos de naves. Caminhemos de mãos dadas, se você permitir.
Saímos logo daquele Café e deixei-o pegar na minha mão. Caminhamos assim, como dois namorados. Meu coração começou a bater muito forte, e quando chegamos à porta do seu prédio eu já estava zonza, como embriagada. Apoiei-me no seu braço e entramos no saguão para pegar o elevador, daqueles antigos, como uma gaiola art-nouveau. Ele depois abriu a porta do seu consultório e avistei logo a mesa com a estatueta de Lizst. Corri para ela, segurei-a, logo recoloquei-a sobre a mesa. Virei-me e Jean-Baptiste prensou-me contra a mesa e deitou-me sobre seus papéis. Ergueu minhas pernas bem alto, sem que eu resistisse, embora um pouco espantada, e arrancou-me a calcinha. Desabotoou a braguilha, e tirando para fora seu enorme mastro, imobilizou-me enquanto eu ouvia o canto alucinante de mil sereias em meu cérebro. Deixei-o fazer o que quisesse. Ele ficou longamente navegando, entrando e saindo de dentro de mim, numa fome de séculos, numa viagem de retorno, numa peregrinação ao lar, que sei eu?...E explodiu num orgasmo imenso que me inundou como a última vaga produzida pela nave que chega ao porto de partida.
Caiu então, sobre o meu peito e ficou assim, imóvel algum tempo, dentro e sobre mim. Depois escorregou, afastou-se e caiu sentado sobre a poltrona de consulta, e ficou olhando fixamente entre as minhas pernas, minha vagina aberta, que escorria. Deixei-o também fazer isso. Eu queria toda a passividade, toda a receptividade que pudesse lhe dar. Isso me produziu uma nova volúpia, de oferenda, de entrega. Eu precisava disso. Isso me apaziguou depois de tanto tempo de luta interior.
Foi preciso Jean-Baptiste levantar-se e fechar as minhas pernas, ou eu ficaria assim para sempre.
Depois, pegou a minha calcinha do chão, e devolveu-ma, novamente tímido, desajeitado. Pisei no chão, vesti-a, lentamente, enxugando com ela minhas coxas escorridas. Ah! Como tudo isso continuava a ser voluptuoso, embora ligeiramente constrangedor...
Jean-Baptiste conduziu-me à sala contígua, a das sessões, e fez-me deitar no divã. Sentou-se atrás de mim, na poltrona e disse:
–Vamos agora dormir um pouco e sonhar. Quero reencontrá-la como Adèle, e contar
a ela o meu encontro com a Alma. Sei que ela sorrirá...
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No dia seguinte acordei no meu quarto de hotel e preparei-me para ir à Galeria.
O telefone toca enquanto tomo o desjejum no quarto. Penso logo ser Jean, mas,
para minha surpresa, é Ceres, saudando-me e dizendo:
–Alma, você não imagina quem está aqui ao meu lado. Um fã seu. Acaba de comprar
o quinto quadro da sua exposição, que ele namorou muito tempo, hesitando entre
esse e outros. Você precisa conhecê-lo, ele faz questão de esperá-la aqui .
Você vem logo? Ele quer comentar coisas que ele descobriu hoje nessa pintura e
nas outras também. Venha, querida. Você está pronta?
–Sim , Ceres, já estou indo. Dentro de poucos minutos estarei aí. Peça para ele
me esperar. Quero conhecê-lo, também.
Em minutos estava eu entrando na Galeria e logo dou de cara com Jean-Baptiste
me esperando ao lado de Ceres. Ele também abriu os braços, mas deixei-me
abraçar por Ceres, carinhosamente, denunciando sua brasilidade persistente.
Jean, um pouco travado, não seria capaz de um abraço assim. Estava um pouco
tímido, especialmente depois da nossa intimidade súbita no seu consultório.
Aproximei-me dele, que tocou meu rosto, para surpresa de Ceres, que nada sabia
sobre nós. Confusa, intrigada com seu gesto, apresentou-me Jean, dizendo:
– Alma, este é Jean, seu mais novo e entusiasmado colecionador. Acaba de
adquirir o quadro seu, vinte e cinco do catálogo, e que ele batizou Pythie. Ele
me convenceu da presença nestas manchas, de uma pítia, que acabei enxergando. É
um louco maravilhoso, você vai ver. Espero que vocês se gostem tanto quanto ele
gosta da sua pintura. Já carregou quatro outras, do acervo, remanescentes da
sua exposição. Insiste em que eu a convença a fazer esculturas, o que não acho
má idéia. Fala sempre no seu “senso de volumes e de espaço”. Acho que ele tem
razão. Mas... vocês parecem já se conhecer, estarei enganada?
–Não, Ceres, você não está enganada. Mas isso é uma longa história, não vem ao
caso. Jean conheceu-me, numa viagem, onde nos encontramos e agora estamos nos
revendo, com surpresa. Pelo jeito ele não havia ligado esta pintora à viajante,
quem sabe... Não é mesmo, Jean?
–Sim, Ceres –disse Jean–Alma não me é estranha, na verdade, mas jamais pensei
que a bela viajante pudesse ser esta pintora aqui. Ela me deu outro nome, se
bem me lembro. Acho que era Adèle, não é mesmo, Alma?
Ou coisa parecida. Acho que ela não confiou em mim, naquele trem, e deu-me um
pseudônimo. Mas, por quê ela deveria confiar num desconhecido que a abordou
atrevidamente no corredor de um trem-leito, rumo a Fribourg, não é mesmo? Eu
pensava que se tratava de uma alemã ou suissa , em viagem de retorno. Jamais
poderia supor tratar-se de uma brasileira, e pintora tão talentosa. Muito menos
que eu me tornaria seu colecionador.
Ceres, espantada, disse: —“ Mas que história fascinante. Que coincidências.
Isso é fantástico. Minha filha adorará essa história. Ela é louca por
coincidências ou “sincronicidade” como ela diz, junguiana fanática e aluna de
psicologia. Logo Annie estará aqui. Chamei-a para conhecê-la, Alma. Da outra
vez, ela estava em férias, justamente na Alemanha, quando da sua exposição,
lembra? Não tivemos tempo para nada, durante aquela pequena temporada, com a
montagem da exposição, e tudo.
Fiquei arrepiada com a menção do nome de Annie, e boquiaberta. Ceres notou e
disse:
—O que é, Alma? Você está estranha, embora pareça bem. Não me diga que já
conheceu Annie também, nalguma viagem. Não me admiraria, sua bruxinha
brasileira. Você parece ser uma feiticeira de mão cheia, Alma.
Nesse momento tocou o telefone. Era Annie dizendo não poder vir,
desculpando-se. Ceres pareceu desapontada e também desculpou-se pela filha,
dizendo:
—Não saberei desta vez, se houve mais uma sincronicidade. Mas não faz mal, haverá
outra oportunidade. Ela está por uns dias em casa novamente e eu quero
convidá-los para almoçar lá, amanhã, está bem? Assim todos se conhecerão, ou se
reconhecerão, não é mesmo?
Ceres era arguta, e não se deixava enganar facilmente. Percebi que ela não
engolira a história de Jean, do trem, muito verossímil para ser verdade. Ela
finalizou:
— Agora preciso ir para casa para receber meu ex marido que vai lá chorar um
pouco e rever sua filha. Espero-os em casa, amanhã, ao meio-dia. Que tal? Está
bem?
Concordamos e despedimo-nos, enquanto Ceres nos levava até a porta da Galeria,
dizendo que depois nos encontraríamos no fim da tarde para acerto de contas e
planejamento da turnê.
Saí com Jean, e disfarçamos um quarteirão, para, ao dobrarmos a esquina, nos
agarrarmos com sofreguidão.
—Alma, Alma—ele balbuciou entre beijos avassaladores— Vou enlouquecer de
alegria, desde ontem encontro-me no céu. Depois de deixá-la, ainda me masturbei
duas vezes, pensando em você, não me envergonho de dizer isto. Estou estourando
de amor e de desejo. Jamais esperei tanta felicidade, Alma, você me salvou a
vida. Você me salvou a alegria de viver! Desde ontem não fumo, você notou? Não
fumarei mais. Você me inebria. Estou embriagado de você, deusa! Venha, vamos
para o meu apartamento, é perto daqui. Você reparou, tudo está perto, seu
hotel, meu consultório, a Galeria e meu apartamento... Venha, venha.
Andamos três quarteirões, ofegantes de impaciência e emoção. Subimos um lance
de escada, ao chegarmos, ele abriu a porta para um espaçoso apartamento de
intelectual, que mais parecia uma biblioteca. Mas não tive tempo de reparar nos
detalhes. Ele atirou-se sobre mim, arrancando minhas roupas e as suas, quase
rasgando-as. Nua, atirou-me de quatro sobre um tapete fofo, e penetrou-me afoitamente
por trás. Na verdade foi atrás mesmo e a seco. A dor foi lancinante, mas eu não
protestei. Somente gritei de dor, num prazer agônico que me estarreceu. Eu
precisava do sofrimento? Essa pergunta me ficou, depois, por bastante tempo. Eu
me desconhecia. Mas esse desconhecimento me fascinava. Eu era misteriosa para
mim mesma e Adèle ainda podia ocupar-me toda, ainda por cima, com as
possibilidades de uma nova vida, deslumbrante.
Mas nesse momento estava eu ali, como uma cadela, feliz no meu sofrimento
físico, senão moral. Ele ofegava em cima de mim com sofreguidão, indo e vindo
até o sangue escorrer pelas minhas coxas. Depois de um violento orgasmo que o
sacudiu, saiu subitamente, novamente olhando-me demoradamente por trás, de
quatro, devassada. Tive então um orgasmo tardio sob o seu olhar, que finalizava
o serviço. Não me envergonharei jamais disso tudo. No amor tudo é belo, tenho
certeza disso.
Demorei para erguer-me, levantei-me sobre uma perna, depois sobre a outra, meus
joelhos dobraram novamente, e caí de bruços, sem forças. Eu me sentia
maravilhosamente estuprada. Serei eu uma masoquista? A dor era tão grande... e
eu queria fruí-la. Se ele agora me possuísse novamente, eu não reagiria, e a
idéia não me repugnava. Eu quisera ser virada do avesso, literalmente. Talvez,
para sair do meu corpo sem abandoná-lo, sem renegá-lo, o maravilhoso corpo!
Devo ser doida. E mais ainda de contar isso tudo aqui. Mas o leitor é um ser
abstrato: eu não o olho nos olhos. É uma espécie de confessionário onde não vemos
o rosto do confessor, nem mesmo a sua voz. E há a volúpia do escabroso, do mais
íntimo em nossa confissão. Fique aí, leitor, não se afaste. Neste conto eu
contarei tudo, sem reservas, mesmo que você me julgue mal. Não quero saber do
seu julgamento. Dê-me somente seus olhos sobre estas páginas e sua visualização
de minhas aventuras e do meu corpo, voluptuosamente martirizado, em sua mente.
Eu me delicio só em pensar em você, seu grande voyeur!...
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Dormi no seu apartamento. Pedi a Jean somente que avisasse a portaria do hotel,
para caso alguém me procurasse, para telefonar para ele. Acordei no dia
seguinte com o corpo moído e com dores terríveis naquele lugar. Como poderia
almoçar em casa de Ceres? Ainda mais que fiquei sabendo que ela telefonou para
Jean , para saber de mim, e ele abrira o jogo. Como poderia conhecer sua filha,
Annie? E se ela fosse a Annie do avião? Eu precisava estar bem. Não podia andar
direito. Tentei e parecia uma grávida de último mês, andando como uma pata, as
pernas meio abertas. Ai, que vergonha! Comecei a ter um pouco de raiva do Jean,
mas logo afastei esse sentimento, resolvida que estava ao insólito, ao inusual,
à aceitação incondicional das circunstâncias daquele relacionamento
excepcional.
Tomei um demorado banho de assento, frio. Bem que os franceses foram os
inventores do bidê. Agora sei por quê ...
Perto do meio-dia, sinto-me pronta para arriscar o almoço em casa de Ceres.
Morro de curiosidade em encontrar-me com essa Annie. Será ela?
Saí com Jean me amparando, com dificuldade de andar, quanto mais de descer e
subir escadas. Jean está constrangido e envergonhado e pede-me desculpas a toda
hora. Ontem, ao desculpar-se, em seguida ao ato, inclinei a cabeça sobre o seu
pênis e beijei-lhe a ponta. Ele sorriu, intrigado, e nada mais falou. Agora
está de novo arrependido, consternado, amparando-me nesta escada como um marido
com a pata choca da esposa grávida. Isso me fez sorrir, com um esgar, entre
dores.
Tocamos a campainha e Annie abriu a porta. Era ela. Caímos nos braços uma da
outra como as maiores e mais íntimas amigas. Mas logo ela pareceu surpreender-se
em ver Jean, ali comigo. Pareceu subitamente constrangida e até contrariada.
Fiquei imediatamente intrigada e corri o olhar de um para outro. Ah! Esses dois
já se conheciam, e muito bem! Quanta sincronicidade! Mas havia aqui um grande
mal estar da parte de Annie, pelo menos. Será que é o que estou pensando? Vou
conferir isso com Jean, logo, logo.
Ceres recebeu-nos vestindo um caftan marroquino que lhe ficava muito bem. Essa
mulher era fascinante, de uma independência e autonomia admiráveis, e parecia
adorar a filha, mas com um respeito e desprendimento ideais. Já Annie, estava
perturbada demais, olhando-nos muito, nos olhos. Eu queria tanto que ela me
olhasse novamente como o fizera no avião, quando nos conhecemos e nos abraçamos
pela primeira vez, em lágrimas!... Jean, você vai me pagar,(eu pensei). Você
aprontou alguma. Esta moça está sofrendo, é visível. E você é um cara-de-pau,
vindo aqui comigo, seu grande sacana (eu pensava). Seu estuprador... Você fez
isso com ela também? Dei um sorriso involuntário. O que me salva é o meu senso
de humor, já dizia meu pai, desde minha infância. “Não se leve muito a sério”,
adoro esse lema trazido para mim, na forma de tabuleta, de uma sala de AA por
um amigo alcoólatra.
O almoço seria maravilhoso, não fosse o mau estar de Annie, que nos olhava
perturbada, e talvez com um certo ressentimento, eu percebia. Ceres segurava as
pontas com seu “aplomb” invejável, tanto mais que devia perceber tudo, sagaz
como era. Por meu lado, disfarcei bastante, da maneira mais fácil para mim, que
era olhar muito os quadros nas paredes, que realmente me fascinavam. Veio-me
mais uma vez aquela consciência do meu amor, acima de tudo, pela arte. “ A arte
é tudo, o resto é nada”, escreveu Eça de Queirós. Ah! como eu concordava com
isso apesar das minhas dispersivas paixões! Lembrei-me das últimas palavras do
grande Camille Corot, no seu leito de morte: “ Espero que no Céu, haja
pintura.” Meus olhos encheram-se de lágrimas, que não puderam ser entendidas,
pois nesse momento Jean contava a Ceres sobre a coleção de seu pai, de
esculturas, e sobre a impressão que lhe causavam na infância. Fazia isso com
aquele humeur francês, que é
impossível descrever. Uma auto ironia, muito diferente da dos judeus, por
exemplo, também maravilhosa. Como definir esse humor? Uma sutileza psicológica
refinada, um certo dandysmo do espírito, e sobretudo um certo spleen, naquele sentido que Baudelaire
dava a essa palavra, uma mistura de tédio e auto complacência consciente,
deliberada. Rimos muito, e Annie até sorriu um momento, quando vislumbrei em
seu rosto, o amor profundo que ainda nutria por Jean. Mas a mágoa teimava em sombrear
seu rosto. Quando quis ir ao toilette, ela prestou-se a me acompanhar.
No banheiro ela olhou-me demoradamente, e abraçou-me em prantos, soluçando.
Dizia:
—“Alma, Alma, era você desde sempre, era você. Eu devia saber, eu devia ter
percebido quando a conheci. Uma pintora, bela e sensual. Uma brasileira, como
minha mãe. Era tão fácil fazer a ligação. Esse homem me torturou com a sua
imagem, sempre presente, até em seu sono. Aquilo era cruel, por si só, e quando
ele me queria, só fazia aumentar a dor. Quando me possuía, era brutal, pois
queria atingir alguém, através e além de mim. E doía demais!” (Pensei no que
Jean fizera comigo, e ficou claro que era o seu estilo, digno discípulo do
Divino Marquês, que ele era. )
Caímos nos braços uma da outra e choramos juntas, ela de dor e amor perdido, eu
de pena e amor por eles, acreditem. Que podia eu fazer, que devia eu fazer?
Lembrei-me do meu propósito de não reagir às circunstâncias, de deixar fluir,
como me ensinou, uma vez um mestre chinês de acupuntura, que eu consultara, e a
cujo tratamento me submetera. O fluir do Tao. Essa era verdadeira sabedoria...
Quando deixamos aquela casa, eu tinha combinado encontrar-me com Annie no meu
Hotel, à noite, para ela me contar tudo, para desabafar. Eu temia apenas me
decepcionar com o Jean, saber alguma coisa mais grave em sua personalidade do
que o seu hábito de sodomita contumaz (perdoem-me o cinismo, mas era isso
mesmo...)
Jean deixou-me no hotel, com um beijo apaixonado e mais um pedido de desculpas
que calei em seus lábios com a ponta dos meus dedos. Deixou-me na porta do
elevador. Subi para o meu andar, caminhando lentamente no corredor e quase não
consegui chegar até a porta do meu apartamento.
Naquela noite fui acordada pelo interfone anunciando a chegada de Annie. Aquilo
foi penoso no início, pois interrompera-me o sono. Bateu à porta e levantei-me
com esforço, lamentando não ter deixado a porta destrancada. Abri e ela
adentrou aos prantos, atirando-se em minha cama. Inclinei-me sobre ela e
beijei-lhe as costas. Mas logo decidi deitar-me também, ao seu lado, e puxá-la
ao meu peito, para acolhê-la, fraternalmente, quase maternalmente.
Mas meu corpo doía demais e escorreguei da cabeceira para estender-me com um
esgar de dor e em lágrimas. Annie afinal percebeu e olhou-me assustada.
—Ah! Miserável , aquele miserável... ele também a deixou assim. Eu conheço
isso. Eu conheço, vire-se, Alma, eu preciso ver isso. Não se assuste, não tenha
vergonha.
Ela abaixou-me a calcinha e abriu-me as nádegas como um fruto. Fez um chiado
com a boca, horrorizada e disse: —Aquele demônio, fez isso com você também.
Deixe-me tratar disso, vou fazer uma compressa fria. Espere.
Foi ao banheiro, voltou com uma toalhinha molhada , os olhos cheios de
lágrimas, e tratou-me carinhosamente, amorosamente. Dizia:
—Vamos nos vingar desse diabo. Alma, temos de nos vingar. Ele não nos merece.
Alma, não se iluda. Ele é cruel... e mau. Ele só ama um espectro do seu
passado, que não entendo. Ele se vinga em nós, essa é que é a verdade. Alma,
Alma, você não pode apaixonar-se por ele. Ele não a merece, minha querida. Ele
não nos merece .
Pensei em dizer a ela que eu não via as coisas assim. Que aquele espectro não
me era estranho, muito pelo contrário: estava ali, bem dentro de mim, e que
além disso, eu considerava, incrivelmente, a sua brutalidade, um ato de amor
desesperado. A sua fome, a sua carência de um século e meio. A fome de Ugolino
devorando sua própria mão... e também seus próprios filhos.
Não, ela não poderia entender isso tudo. Pareceria loucura aos seus olhos. Ela
veria em mim, somente uma louca apaixonada, cega de amor e de paixão, como ela
mesma ainda era, malgrado seu ressentimento.
Ela permaneceu muito tempo, cuidando de mim, o que me enterneceu prazerosamente,
apesar do meu propósito inicial de consolá-la. Na verdade, sua atitude, por si
só, era verdadeiramente terapêutica para ela mesma, e sentindo isso
abandonei-me aos seus cuidados. Bem mais efetivo do que eu abraçá-la,
afagar-lhe as costas e enxugar-lhe as lágrimas com meus beijos. Minha doce
Annie, minha amiga, meu amorzinho...
Ela adormeceu ao meu lado, abraçadas as duas, sua mão entre minhas nádegas. Eu
me sentia completa agora. Adèle me tomava toda... ou seria eu mesma? Eu sempre
fora assim, há séculos. Eu amo as pessoas que amam, como obras de arte que elas
são, mormente quando sofrem, quando derramam ardentes lágrimas de dor, a
legítima dor do amor, tanto quanto as lágrimas da incomparável alegria.
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Acordei sem a presença de Annie na minha cama ou no apartamento. Encontrei o
seu bilhete:
“Alma, querida, eu amo você e vou vingá-la. Vou vingar-me também. Não tente
deter-me. Esse monstro precisa ser punido. Aguarde noticias. Beijos
Annie”
Fiquei tremendamente preocupada. Esqueci-me totalmente do Tao, e me pus em
grande aflição. Fui banhar-me rapidamente e vestir-me o mais depressa possível.
Sentia que precisava interferir, salvar Jean. Eu devia me apressar. Algo terrível
estava para acontecer, eu sentia, eu temia. Lembrei-me de ligar para Jean. Mas
o telefone tocava, tocava e ninguém atendia. Afinal atendeu a secretária
eletrônica. Disse quase gritando:
—Jean, Jean, saia daí, ou não atenda a porta. Annie está furiosa, Jean. Está
louca. Pode ser perigoso, não atenda, Jean, por favor. Ela quer vingar-se. Ela
vai...
O tempo de gravação, muito curto, esgotou-se. “Matá-lo...”eu murmurei
depositando o fone, em estado de terror.
Saí do apartamento, atirei a chave do quarto no balcão, de maneira intempestiva
e descortês. Não havia mais tempo. Pensei em procurá-la em casa ou na Galeria.
Lembrei-me que descumprira o combinado com Ceres, no dia anterior, no fim da
tarde. Não tinha sido possível. Nada mais seria possível. Eu não queria mais
nenhuma turnê. Não com a minha presença nela, pelo menos. Eu queria salvar Jean
e Annie para mim, os dois, para mim!
Subi afinal, ofegante, a escada de Jean e sentei-me no chão, encostada à sua
porta. Eu barraria qualquer passagem. Se não pudesse permanecer sentada, eu me
deitaria em frente à porta. Eu esperaria ali. Teriam que passar por cima do meu
corpo. Poderia dormir.
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Fui acordada, sacudida, era Jean, preocupado:
— Alma, o que é isso, minha querida, o que você faz aqui no chão, dormindo?
Você está bem, querida?
Abracei-lhe o pescoço, em lágrimas, dizendo:
—Jean, Jean, você está vivo? Annie não o encontrou, afinal. Jean, vamos fugir,
não é seguro ficarmos aqui. Algo terrível pode acontecer. Não pude controlar a
situação. Não tenho esse poder. O amor de Annie está doente. Ela não perdoa o
desamor, a rejeição sofrida. Ainda mais que você a feriu com sua lança, quero
dizer... Você entende, não? Comigo é diferente. Sou uma louca de outro tipo.
Diferente dela. Que estou dizendo? Não sei mais. Tenho medo, Jean, tenho medo.
Jean pegou-me no colo, levantou-me e carregou-me para dentro, empurrando a
porta. Esta abriu-se estranhamente e demos com Annie, de pé na sala, com um
revolver na mão. Ela estava ali o tempo todo esperando por ele. Ela ainda tinha
a sua chave! O que realmente houvera entre eles? Esse caso era mais sério, eu
via... e agora era tarde demais!
Annie gritou: “Largue Alma, seu canalha, ponha-a no chão ou poderei feri-la.”
Jean, perplexo, depositou-me no chão, mas eu levantei-me e pus-me em sua frente
no momento exato em que ela atirava. A bala atingiu-me com tal impacto que
atirou Jean para trás com o meu choque em seu peito. Tudo foi-se apagando, mas
ainda pude ouvir os gritos de Annie e também os de Jean, enquanto eu descia a
um poço escuro.
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Acordei no hospital , alguns dias depois. Eu estava envolta em ataduras, abaixo
dos seios e a dor era tanta ainda, que gritei, chamando a enfermeira. Esta
apareceu, correndo. Disse:
—Alma, menina, não se mexa, você está bem. Seus amigos estão aí fora, há dias.
Choraram bastante, agora estão felizes. Já sabem que você escapou. E aquela
Madame Corinne, menina! Esteve aqui todos os dias. Mas a mais dedicada foi a
sua marchand, Madame Ceres, não é mesmo ? Esteve muito aflita, parecia sua mãe,
e não poupou esforços e orações a uma santa brasileira, se não me engano, para
tirá-la do buraco escuro onde você estava. Pelo jeito a Santa é forte, olha aí,
o santinho que ela me deu—(apesar da dor, percebi tratar-se de Iansã )— Você é
querida, hem, menina? Precisa contar-me o seu segredo. Também, uma moça tão
bela!
Sorri penosamente, e pedi-lhe sussurrando, que chamasse Jean. Ela disse:
—Claro, menina, ele está aí, o seu amigo. Era o que mais chorava, além de uma
moça que está aí também.
Surpresa, vi Annie e Jean entrarem juntos e cercarem-me a cama, um de cada
lado, agarrando-me as mãos.
—Alma, Alma, - disse Annie - você precisa me perdoar. Não agüento mais, Alma,
você precisa me perdoar. Eu não me perdoo. Eu a amo, Alma, eu a amo tanto, nem
sei bem porquê... Jean já me perdoou. Se ele não o fizesse, eu não chegaria até
aqui: a próxima bala seria minha.
—Pare com isso, Annie - disse Jean- Já nos perdoamos um ao outro. Alma não
precisa sofrer mais. Ela não merece isso. Ela quis salvar-nos, a nós dois, essa
é que é a verdade. Com sua própria vida. Devemos isso a ela. Juntemos nossos amores
sobre ela, que os purificará. Não é mesmo, Alma?
—Sim, Jean (sorri, dolorosamente ) —Deixem fluir a vida. Deixem fluir o amor.
Deixem... tudo fluir...
Adormeci.
29/05/2006
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Corinne
Terceira e última parte da Trilogia Perséfone, de Alma Welt
Passei semanas no Hospital, não sei ao certo quantas. Minha recuperação ainda
assim foi surpreendente, segundo os médicos. Minha enfermeira, Claire,
tratava-me com um carinho especial. Queria saber sobre a minha vida e sobre o
Brasil. Os meus amigos teriam dito a ela que eu me comportara como uma heroína,
e ela então tratava-me com redobrada devoção, que me comovia. Chegou a ponto de
trazer a sua irmã mais nova para conhecer-me, no leito. Uma menina de grandes olhos
perplexos, que pôs-se a chorar subitamente. Afaguei-lhe a cabeça, o que fez
aumentar seu choro. Eu também me comovia com tudo. Estava fragilizada, com
tantas emoções, depois do trauma sofrido. Mas, no entanto, contraditoriamente,
eu me sentia feliz, claro, sobretudo com o desfecho redentor de tudo aquilo.
Jean me visitava todos os dias. Na verdade, não queria desgrudar-se da minha
cabeceira, e o seu olhar, de amor e desejo, me enterneciam. Volta e meia
beijava-me ardentemente e tocava os meus seios, para logo em seguida disfarçar,
com as entradas de Claire, que o despachava, recomendado-lhe que me deixasse
repousar. Quando lembro dessas coisas, reconheço que foi um dos períodos mais
felizes da minha vida. Cuidavam de mim, eu podia descansar de tensões de que eu
não me dera conta até então. As tensões da sobrevivência lá fora, da minha
missão de artista, que eu me impusera tão cedo, a partir de uma data imprecisa
da minha juventude. Dos deveres que eu me impusera na escolha da minha
carreira. Como tudo isso era pesado!... agora eu percebia como quem arreia uma
carga, afinal, com a permissão do Grande Patrão, ainda que temporariamente.
A falta que eu poderia sentir de mãe, já que a minha tinha me deixado tão cedo,
era agora suprida por estas duas maravilhosas mulheres: Corinne e Ceres. Elas
me visitavam todos os dias, e percebi que me disputavam a preferência. Mas,
para mim, elas eram duas maternalidades diversas: Corinne buscando Adèle, e
Ceres, a Perséfone resgatada do Hades, que ela via em mim depois do acidente.
Quanto à Annie, ainda sofria demais. E Ceres não conseguia entender o que
realmente se passava com ela, pois Annie não se abria com ela, por uma razão
que eu pensava saber interpretar. Percebi que Annie temia muito a natureza
tropical de sua mãe brasileira, como um enigma que ela suspeitava tê-la
contaminado, de mistérios e sortilégios de um mundo desconhecido e do qual ela
procurava defender-se. Como tudo isso era complexo!
Jean contara a todos, inclusive à policia, que havia sido um lamentável acidente
entre amigos que se queriam muito, e a policia observando nossas relações tão
carinhosas e emocionadas, tendeu a acreditar rapidamente nisso. Todavia o
inspetor Bernard, ainda aparecia para fazer perguntas, com um ar vago,
pensativo, como se não estivesse totalmente convencido, ou estivesse
simplesmente curioso. Afinal, aproximou-se um dia do meu leito e disse:
–Mademoiselle Alma, há uma questão relativa à sua pessoa, que não foi
solucionada. Trata-se, na verdade, de algo muito íntimo... e constrangedor. O
seu médico, o Dr. Breton, interrogado por mim, e preocupado, como eu pela
mocinha, confidenciou-me algo muito grave. Durante os exames que ele fez no
corpo de delito, quero dizer no corpo da demoiselle, após o atentado, digo,
acidente, que sofreu, foi constatado outro tipo de violência que a jovem teria
sofrido. Sim, segundo o seu médico, trata-se nitidamente, de violência sexual,
ou estupro, mesmo, melhor dizendo. Sei que isso é um assunto delicado, e que a
mocinha ainda está traumatizada e em começo de recuperação. No entanto, o dever
me obriga a insistir neste assunto. Um crime, pelo menos, senão dois, foi
cometido aqui, contra a sua pessoa. A demoiselle não gostaria de falar sobre
esse assunto, ou mesmo prestar queixa contra o agressor?
Fiquei tremendamente embaraçada, e preocupada com Jean. Não queria
comprometê-lo. Além disso, envergonhada de que me tivessem assim devassado.
Como explicar que aquilo fora “estupro consentido”? Haveria isso,
como “figura jurídica”? Ai!... Que vergonha! Como falar disso, de qualquer
maneira, senão com vocês, meus leitores sem rosto? Não sabia o que responder ao
inspetor Bernard. Como uma idiota, respondi, hesitante:
–Inspetor... não sei do que o senhor está falando...
– Mademoiselle, visto que reage assim, vou ser bem claro, me desculpe. Foi
encontrado grandes traços de esperma... no reto da senhorita, que estava num
estado aterrador, segundo o dr. Breton. Poucas vezes se vêm casos assim tão
nítidos de violência anal. Como a senhorita percebe, não podemos passar por
cima desse assunto, ainda mais que ele parece ligado ao caso da senhorita como
um todo. Duas violências juntas contra a mesma pessoa , têm que estar
necessariamente ligadas, não podem ser simples coincidência, não é mesmo?
– Inspetor, pelo amor de Deus, mantenha isso sob sigilo: não houve nenhum crime
aqui. A verdade é difícil de acreditar, mas trata-se de um caso de paixão, de
arroubo, de amantes que se descontrolaram. Tanto mais que essa modalidade é
preferência nacional em meu país, parece que no mundo todo, na verdade...
– Mademoiselle Alma, já que quer assim, nada posso fazer. Mas garanto-lhe,
tenho uma filha da sua idade, e se algum canalha... bem, vou encerrar o caso.
Mas reservo-me o direito da minha opinião: a senhorita está escondendo alguma coisa.
Por isso podem contar com o meu olhar vigilante, mesmo à distancia. Por ora,
fique com meu cartão. Qualquer novo problema me procure. A senhorita é
singular... Bem, espero que tenha uma boa recuperação e sucesso na sua
carreira. Nada entendo de arte, mas sou curioso e fui à galeria e pedi para ver
as suas obras. O enigma só fez aumentar. Passe bem, desejo-lhe felicidade... e
serenidade no amor. Cuide-se, mocinha.
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Quando afinal tive alta, já o caso estava encerrado e Jean queria de todo o
jeito que eu me mudasse para o seu apartamento, dizendo que contratara uma moça
para cuidar do resto da minha recuperação, da minha alimentação, etc. Aceitei
sem mais resistências. Eu iria brincar de casinha, e permitir-me uma maior
trégua na minha carreira e nas tensões que eu tinha descoberto e a que já me
referi. Ia ficar um longo período sem pintar, já que sentia dores quando erguia
o braço direito, que além disso estava enfraquecido. Eu poderia escrever
poesia, quem sabe, como na minha adolescência Lembrei-me de um poema idealista
e simbólico que escrevi aos dezesseis anos, em homenagem a Leonardo da Vinci,
que eu, em minha enorme pretensão de artista, considerava meu mentor espiritual
desde sempre:
Ode a Leonardo da Vinci
Antigos apelos se perderam no tempo
Continuamos sós na solidão...
As planícies se erguem num vôo de águias e de corvos,
Uma floresta de punhais recorta o espaço.
Mas algo nos enfraquece ainda,
Dispersos sob o sol desconhecido e agônico.
Os continentes se cobrem de couraças,
Que já sobrevivemos à Beleza,
Que nossa dor persiste.
Messer Leonardo da Vinci, mestre e pai,
A tua voz lançada nos espaços do Tempo
Chegou até nós, embora ainda indignos,
Mas de antemão redimidos pela tua força.
Todavia, falo por mim só,
Solitários que estaremos sempre...
Em sonhos e delírios sou a discípula bem-amada,
De cujos olhos, dia a dia, intensificas a luz
E a cujo ouvido murmuras sonhos loucos.
Sou a discípula dileta, renascida e pura.
Sou tua procura, teu silêncio,
A nobre curiosidade em teus sentidos,
A tua casta barba afagada na concentração,
E a tua poderosa e alva mão que afaga e cria.
Perdoa, Mestre, não te amei de um perfeito amor:
Como Beltraffio, temi os teus poderes
E a tua sabedoria perturbou-me a alma.
Eras, em verdade, o mago, o bruxo, o grande Alquimista.
Cavalgaste nas noites proibidas,
Rumo ao Sabat dos deuses mortos.
Conhecias a Noite e talvez fosses seu mestre.
Terias transmutado os metais,
Imenso criador de ouro que tu foste.
Nas cidades anoitadas sei que pairas.
Às vezes suponho avistar a tua barba anciã
Novamente transmutada no ouro da tua sábia juventude,
Como um periódico cometa no céu da minha alma.
Mestre, também estou só, procurando na Terra
Enquanto procuras no Infinito
Aquilo que já era teu, pois foste verdadeiramente belo.
Ama-me ao longe, Mestre, e dá-me a tua benção.
Desde a Morada dos Sábios e dos Altos, dá-me a tua benção.
Aqui, nos ossos da feroz maquinaria,
Algo do teu amor lateja e subsiste.
Algo da tua estranha fé renova-nos a face
Consumida nos grandes estrépitos modernos.
Perdoa, pois, ó Mestre, o que fazemos da tua voz.
Distante a discernimos e a amamos sempre,
Embora não saibamos responder.
Agora ao lembrar-me desse poema me sinto um pouco envergonhada com o
romantismo, ou excessivo idealismo que vislumbro em meu caráter, tão
contraditórios com o meu senso de humor que prefiro muito mais, e que tão
lucidamente fora incentivado por meu pai, em minha infância, ao contrário de
minha mãe, que parecia exigir que meninas não o tivessem, e muito menos que
fossem engraçadas, pois lhe parecia uma espécie de despudor.
No apartamento de Jean, começou um período estranho, embora feliz. Quero dizer:
havia alguns mistérios a serem resolvidos, e eles ali se apresentavam mais
claramente. Jean continuava suas pesquisas sobre Adèle, sobre a qual estava
escrevendo um monografia fartamente ilustrada, enquanto procurava algo mais do
que parecia. Mais do que um simples trabalho erudito sobre arte. É claro que
ele procurava a própria Adèle e eu estava ali como sua refém. Como se ele a
visse sempre através de mim, o que me incomodava um pouco. Temia que ele
pirasse e que quisesse voltar no tempo. Isso procedia, pois um dia apareceu
vestido em minha frente com uma indumentária demodée, de escultor do século
XIX, com um espantoso laço no pescoço e uma boina. É verdade que o fez com um
ar de diversão, mas eu percebi algo mais. Trouxe-me também um vestido maravilhoso,
daqueles com armação por baixo, emprestado de uma amiga atriz que tinha feito
com ele a Dama das Camélias. Vesti-o sem reagir e ele caiu-me aos pés, como
Armand, enquanto eu fingia desfalecer de tísica terminal em seus braços. Rimos
muito, o que fez realmente doer-me muito o peito baleado. Ele preocupou-se e
carregou-me para o leito. Aí sim, quase morri, por puro “fisique du role”. Ah!
Quando me lembro disso tudo, doe-me o coração e a nostalgia confunde tempos e
idades em minha alma!...
Afinal, quando comecei a sair de casa, procurei Annie que tinha sumido, mas não
pude encontrá-la. Ceres me disse que Annie tinha ido ao Oriente, mais
especificamente à Jerusalém. Aquilo me soou como uma peregrinação que a pobre
Annie se impusera. Como eu gostaria de abraçá-la novamente, beijá-la e
dizer-lhe o quanto a amava! Sim, que eu a amava tanto quanto a Jean, embora
isso pudesse não ser nenhum consolo para minha pobre amiga.
Corinne visitava-me quase todos os dias. Ela me maternalisava abertamente pois
não tivera filhos, seus mesmo, muito menos uma filha. Ela criara Jean e o seu
irmão sem grandes veleidades de mãe, mais como uma dedicada amiga do que
madrasta. Esse irmão de Jean era um mistério para mim. Parecia que tanto ele
como Corinne evitavam mencioná-lo ou sequer pensar nele. Mas, a razão disso eu
haveria de desvendar em seguida.
Corinne trazia alguns resultados das suas pesquisas sobre Adèle para Jean, mas
eu percebia que ela estava agora mais interessada em mim mesma, em pesquisar na
verdade esta Alma aqui. Ela, no entanto fazia isso com um carinho
extraordinário e parecia adorar uma oportunidade qualquer de abraçar e
acariciar. Eu estava comovida e intrigada ao mesmo tempo, em relação a essa
bela mulher quase idosa, que realizava talvez sua fantasia de mãe, tardiamente,
comigo. Mas não tardei a descobrir que havia também uma nuvem em sua vida.
Corinne encontrara o pai de Jean em circunstâncias parecidas com as nossas. Ela
era atriz, em começo de carreira. Descobri que era talentosa, mas sobretudo
bela. Tão bela que isso até prejudicava-lhe a carreira, colocando-a sob
suspeição, como acontece comigo também, essa é que é a verdade, perdoem-me a
imodéstia. Como se às mulheres bonitas nada mais fosse permitido, muito menos o
talento. A inteligência então, nem se fala. Bem, há muito tempo me reconciliei
com esse fato, e agora consigo administrar razoavelmente essa
"desvantagem". Mas Corinne foi vítima disso, e tomada pela paixão,
renunciou à sua vocação de atriz, o que a manteve virtualmente prisioneira de
um grão-senhor e de seu castelo de espectros materializados: um fabuloso museu
de esculturas prodigiosas, que lhe produziam admiração, respeito, mas também um
certo temor. Ela tentava acompanhar a paixão derivativa do pai de Jean (que se
chamava Ugo) mas não conseguia. Aquelas estátuas logo se apresentariam ao seu
espírito como um cenário terrível das vítimas petrificadas pela Górgona, em seu
silêncio aterrador, em seus gestos interrompidos, no espantoso oposto do
animado mundo do seu teatro perdido.
Corinne não se tornou uma mulher triste, mas truncada, neutra. Só se animava no
recesso da intimidade dos braços do seu amado, quando este esquecia um pouco o
seu fabuloso elenco mudo, dessa peça incompreensível, de todos os mitos
petrificados juntos como o Museu do “Inconsciente Coletivo” da Humanidade, que
ele mantinha ciumentamente em sua casa. Deuses, deusas e alguns mortais
escolhidos ocupavam lugares determinados num tabuleiro invisível aos não
iniciados, no espaço mental de sua casa, como um jogador solitário que joga
sempre consigo mesmo, eternamente.
Corinne poderia ser destruída nesse tabuleiro, onde não se encaixaria, não
fosse ela uma espécie de bela sombra necessária que velava para que o insólito
torneio não tivesse fim.
Quando Ugo ficou afinal doente, ela pode afirmar-se com uma autoridade
desconhecida de todos até então, quase anulada que estivera durante tanto
tempo. Jean e seu irmão não lhe tinham sequer dado a importância que poderiam
lhe dar, órfãos que eram, na verdade, e tão necessitados de mãe. Procuravam a
atenção do pai, cada vez mais distante em seu sonho incompreensível, e sem
perceber, avaro em seu carinho. Austero demais no trato pessoal, exigia dos
meninos somente a cultura e o dever. Não tardei a descobrir que o irmão de Jean
fora vítima desse processo. O rapaz se suicidara aos quinze anos. Foi
encontrado enforcado no sótão da casa com um bilhete:
DANE-SE MICHELÂNGELO!
Parece que esse bilhete de suicida chocara o pai de Jean, mais do que tudo, e
tratou de por uma imensa pedra de Carrara em cima do episódio. Não sei como
Jean sobreviveu a isso tudo. Sabendo disso, agora, eu queria derramar o meu
amor, o meu carinho e a minha ternura sobre este sobrevivente que me parecia
heróico, pelo simples fato de ainda estar ali.
Eu podia imaginar a dor do pequeno Jean diante daquele enforcado, já que fora
ele o primeiro que o encontrara. Eu ainda enxergava aquele susto, aquela
perplexidade, nos seus olhos azuis quando me olhava nos seus momentos mais
frágeis, mais íntimos. Eu então lhe beijava as pálpebras para fechá-las como às
cortinas de uma peça encerrada, que ninguém aplaudiria.
Corinne então revelou-se a partir dali. Tomou as rédeas de uma casa que
ameaçava desmoronar-se, não fisicamente, já que tudo era tão firme como o
bronze e o mármore e as paredes monumentais, mas no seu sentido interno,
íntimo, que parecia perder o seu significado quando o caixão foi velado, à
antiga, entre quatro tocheiros de prata, no salão cujas estátuas foram
temporariamente afastadas. Corinne segurava a mão de Jean que parecia ter virado
novamente um menininho diante de algo que não compreendia. Certamente era mais
fácil entender a imobilidade daquelas estátuas do que a do rosto branco de seu
irmão, de olhos cerrados naquele caixão rodeado de flores mórbidas. Jean nunca
mais suportou as flores e a única rosa que me deu foi aquela que pôs no copo da
nossa mesa do Café naquele nosso segundo encontro. Como tudo aquilo agora
parecia distante!... Como eu estava envolvida agora com o universo do meu amor,
que eu descortinava dia por dia, compenetrada do imenso mistério e grandeza da
vida humana, quanto mais é vista de perto, de dentro, e do fundo de sua
profundidade insondável como um belo e triste lago de águas negras...
Jean me amava cada vez mais e sua idolatria poderia se tornar perigosa para ele
mesmo. Eu temia a sua tendência delirante, a que eu mesma não estava imune. Eu
me conhecia, e sabia como eu era influenciável pela emoção, se não pela razão.
Eu sempre pusera poucas barreiras ao arroubo, ao entusiasmo e à profunda
comoção na minha vida, pois eu não me permitiria poupar-me, numa trajetória que
eu queria plena, rica, se possível sublime. Essa era a verdade do meu coração
romântico, que só me permito confessar aqui, sobre estas páginas.
Um dia Jean, vendo-me recuperada, e bem, chegou da rua com entradas para o
Opéra. Iríamos ver Lakmé, de Léo Delibes. Bati palmas de alegria. Era uma das
minhas óperas favoritas e só em pensar em ouvir ao vivo “ Où va la jeune
hindoue ”, a “Ária das Campainhas”, meus olhos se encheram de lágrimas de emoção.
Vestimo-nos com apuro, e uma hora depois estávamos naquele saguão da Pythia,
que desta vez evitei olhar muito. Queria preparar-me para fruir a música, e não
aquele grito mudo, que agora me causava uma certa repulsa.
Instalados no camarote, ouvindo a maravilhosa abertura daquela ópera, em que já
se insinuava o tema da ária famosa, pus-me a caminhar com a jovem hindu, “fille
des parias” com a qual estranhamente me identificava. Que contradições eu tinha
na minha alma, que ia da duquesa Adèle à aquela pequena pária da Índia, que
batia uma pequenina campainha para afugentar o tigre, em sua travessia
solitária da floresta. Eu via ali a alegoria da minha própria vida, pequena e
frágil que, na verdade, eu era, soando uma campainha que era a minha própria
arte tão modesta diante de um mundo tão vasto e ameaçador como aquela floresta.
Depois de momentos sublimes, em que pus-me a derramar-me em lágrimas de maneira
tão abundante que preocupou Jean, a ponto de querer retirar-se comigo,
acreditando que aquilo estava me fazendo mal, encontramo-nos ao findar o
espetáculo, com Corinne no salão, que belíssima com seus cabelos brancos, que
eu adorava, e que tinham tal luminosidade que a destacavam naquele Foyer, nos
abraçou, alegre, e puxou-me para um canto confidenciando-me:
—Alma, querida, preciso de você. Não me pergunte nada por enquanto. Venha à
minha casa amanhã, mas não diga nada a Jean, eu lhe peço. É absolutamente
imprescindível que você venha só. Tente despistar o seu marido, posso chamá-lo
assim? Vocês formam um casal tão unido, que acredito poder considerá-los marido
e mulher. No entanto, peço-lhe esta pequena traição. Sim? Você virá querida?
–Claro, Corinne – disse eu–Estarei lá amanhã, cedo, se você quiser. Estou à sua
disposição, você pode sempre contar comigo, você sabe.
Após aquela noite, em que fui dormir feliz e comovida, mas ligeiramente
perturbada pela curiosidade, acordei cedo, e preparei-me para rever o castelo
da Medusa, com seu fabuloso tesouro de deuses petrificados.
A porta me foi aberta pelo seu novo empregado, uma espécie de mordomo negro,
africano legítimo, que ela descobrira e que seria capaz de morrer por ela.
Conduziu-me escada acima até o andar superior, a que eu nunca tinha subido, e
que mais parecia o das dependências íntimas de um palácio. Bateu na porta de um
quarto no fim de um corredor e em seguida empurrou a porta e retirou-se sem
olhar para dentro. Vi Corinne num portentoso leito, sentada com a bandeja de
pernas, do “pétit déjeuner” em sua frente. Depositou a xícara e com um sorriso
receptivo, disse:
–Alma, minha querida. Que bom que você veio! Eu sabia que podia contar com
você. Você está bem ? Sente-se aqui ao meu lado, querida. Quero mostrar-lhe uma
coisa.
Tirou de debaixo do grande travesseiro, atrás de si, uma caixa de madeira
marchetada, e abrindo-a retirou uma carta, que pelo papel, à primeira vista me
pareceu antiga. Entregou-ma, dobrada que estava, abri-a e li:
" Minha querida Corinne
Quando você abrir esta carta, já terei ido, levando comigo as lembranças dos
momentos felizes do nosso encontro nesta vida. Você foi sempre a minha amada
ideal. Sei que você sacrificou tanto pela nossa relação: uma parte importante
da sua vida, da sua alma mesmo. Mas eu sempre soube apreciar isso, e
reconhecê-lo em meu íntimo, apesar do meu enorme egoísmo, que também reconheço.
Todavia eu não podia abrir mão, jamais, da sua dedicação, de sua abnegação a
mim e aos meus filhos, que eu não saberia carregar depois da morte de Adèle.
Sou mais fraco do que pareço e você sabe disso muito bem. Agora quero
revelar-lhe um segredo: Minha falecida Adèle, era bisneta da grande Adèle
"Marcello", minha escultora favorita (que tivera uma filha natural, e
portanto uma descendência que descobri nas minhas pesquisas), e confesso que
somente por isso casei-me com ela, o que pode ter sido um erro fatal, pois não
pude fazê-la feliz como ela merecia. Ela matou-se, essa é a verdade que nunca
lhe contei porque eu tinha imensa vergonha de mim mesmo por esse fato, como
pela morte nas mesmas circunstâncias do irmão de Jean, o infeliz pequeno
Marcello, vítima como a mãe de uma carência que eu não pude suprir em ambos.
Considero você e Jean, sobreviventes, talvez, do meu egoísmo, da minha enorme
pobreza, que agora realizo. Não soube manifestar meu amor por vocês todos, dominado
que estava por meus espectros, sobretudo pelo espectro da primeira Adèle, que
foi a obsessão da minha vida. Espero que você e Jean escapem dessa herança
maldita e que as primeiras peças de que se desfaçam após a minha morte sejam os
Marcellos da minha coleção. Eles são os fantasmas cristalizados de uma obsessão
que me tomou desde que eu era criança, quando fui levado ao Opéra por meus pais
para assistir uma ópera francesa se não me engano a Lakmé de Delibes.
No Grand Foyer, defrontei-me pela primeira vez com a Pythia que obsedou a minha
vida em torno de uma Musa que quase consegui captar e que você sem saber também
corroborou ao interpretá-la numa peça, sem se dar conta, e em cujo papel lhe
conheci.
Como você sabe, meus filhos herdaram os nomes ligados àquela vida: Marcello e
Jean-Baptiste, o amigo,que na verdade nunca foi um amante a não ser espiritual,
talvez. Adèle-Marcello foi apaixonada por Lizst, desde que ela o conheceu e fez
o seu busto que tenho no meu escritório, um dos exemplares de uma edição
raríssima, três peças somente, uma está no Museu de Fribourg, a terceira nunca
pude localizar. Também nunca pude suportar a música de Lizst, mas eu a ouvia
para compreender Adèle ou para tentar captá-la, de algum modo. Sei que você
sofria calada todos estes anos por estas minhas estranhas paixões, e que você
suportou mais do que a maioria das mulheres suportaria. Quero que me perdoe,
depois da minha morte, se puder, pois estou convencido de que as obsessões são
duradouras, atávicas e herdáveis... como os tesouros e as maldições.
Perdoe-me e acredite no meu amor, apesar de tudo
Seu
Ugo"
Terminei a leitura e permaneci de olhos parados, algum tempo. A carta era uma
grande contribuição ao entendimento da vida e da psique de Corinne e de Jean,
embora acrescentasse pouco ao conhecimento de Adèle. Não cheguei a ter pena do
pobre Ugo, pois sua carta não chegou a me comover, denunciando seu fundo de
frieza ou mesmo de impenitência. Queria eu que o pobre também tivesse se
suicidado, para poder perdoá-lo, e chorar por ele? Não sei... Mas eu podia
chorar por Jean, por Corinne e sobretudo por aquele pobre menino Marcello,
vítima maior de tudo isso... Adèle, dentro de mim, eu sentia agora como uma
ameaça. Devia eu recalcá-la, a ela que tantas vítimas fizera no passado, em sua
vida, até os nossos dias?
Corinne segurou-me as mãos, beijou-as e disse:
–“Minha pequena Alma, minha querida, agora vou mostrar-lhe outra coisa. Só
espero que você nada fale ao Jean, do que estou lhe mostrando. Nem da carta nem
disso ”– e dizendo isso apontou uma estante que cobria toda a parede em frente
à cama, que se abriu, girando a um toque seu, que não percebi, descortinando um
quarto escuro, uma alcova, decorada como um cenário místico, vazio, teatral,
com um nicho onde estava, terrível... a Pythia!.. em seu tamanho natural,
sentada na trípode, com seu grito mudo, a garra no ar. Aquilo me causou tal
espanto e emoção, que por pouco não desmaiei, sob o seu impacto. Ela parecia
iluminada por um foco escondido que a fazia flutuar. Não obstante sua leveza,
continuava ameaçadora como uma Fúria, a Górgona, ou uma Harpia. Lembrei-me da
minha experiência passada, na fazenda de Antônio e Chiara, e um arrepio
tomou-me o corpo, tanto mais que aquela obra tinha uma ressonância interna, em
mim, que me chocava e me repugnava. Quis fugir daquela visão, e do quarto de
Corinne, mas esta segurou-me os ombros, e abraçou-me dizendo:
–Enfrente-a, Alma, enfrente-a em você
mesma! Seu coração é tão belo e poderoso que pode nos exorcizar a todos, a
começar por você mesma. Adèle, aquela feiticeira, não vencerá, no final. Sua
beleza destrutiva precisava ser purificada e coube a você fazer isso. Eu
percebi isso desde a primeira vez que a vi, aqui nesta casa, com Jean, quando
vocês vieram consultar o Bénézit. Considero seu encontro com Jean e comigo,
providencial. Só você, herdeira da alma de Adèle, redimida afinal, poderia nos
livrar do seu sortilégio antigo, maldito. Sua alma purificou-se, evoluiu, pode
se ver, em você, meu anjo. Lillith ficou para trás, perdeu suas garras com o
século que passou e agora vemos afinal a perfeição de sua alma de artista,
diante de nós, nesta Alma aqui, que todos amamos!
Caí em prantos, numa tremenda emoção. Corinne me abraçava como a mãe que
reencontra uma filha perdida e essa impressão haveria de voltar mais tarde em
meu espírito.
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Jean trabalhava todos os dias no seu consultório e trazia dinheiro para casa, e
também presentinhos, mimos. Eu me sentia a sua mulher, domesticada e contente.
Cuidava do lar e só faltava ajeitar-lhe o chinelo e o cachimbo (ainda bem que
ele não fumava mais).
Estava sempre pronta para o amor, ou para o sexo mesmo, melhor dizendo, e ele
me enchia do seu esperma precioso, no mínimo duas vezes por dia. Aquilo fazia
bem para a pele, eu me lambuzava bastante com ele e me sentia plena e feliz.
Porquê então não estava satisfeita? Ah! Adèle em mim, a minha alma de artista,
terrível, me espreitava do fundo do seu nicho interior. Sua garra no ar, não
permitia que o véu do santuário se fechasse totalmente sobre ela. Ai, estas
metáforas me matam, mas era assim mesmo que eu sentia.
Preparei-me então, aos poucos, para dar o basta, romper com tudo e dizer a
Jean:
–Meu amor, preciso voltar ao meu ateliê. Preciso ser livre, como outrora, para
criar. Ceres pressiona-me, estou aqui há seis meses, e ela me quer de volta ao
reino dos vivos, onde se sofre, eu sei, onde não estarei protegida, senão por
ela mesma, mas onde poderei correr livre e colher as flores do meu caminho (eu
insistia nas metáforas...)
Jean olhou-me perplexo e consternado. Abraçou-me e com lágrimas nos olhos e
disse, quase gritando:
–Não me deixe, Alma, não me deixe! Eu não vou suportar, eu morrerei se você me
deixar de novo. Não posso mais viver sem você. Nunca pude... por favor, Alma,
por favor!
Olhei-o e vi nele o menininho que Corinne segurava pela mão no velório de seu
irmão. Meu coração apertou-se... e eu cedi. Permaneci silenciosa, de cabeça
baixa e nada mais falei. O meu coração estava dividido entre ele e a minha
arte. Entre Jean e mim mesma.
Mas então me lembrei do Tao, e do propósito de não oferecer resistência à
corrente, ao momento. Deixar fluir. Isso me apaziguou. Meu coração
descontraiu-se, eu sorri, e envolvendo-o com meus braços, puxei-o sobre mim, ao
leito, para ser mais uma vez inundada pelo seu branco amor.
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Andando pelo “Marché-aux-pouces” , agora que eu continuava a fazer a madame
ociosa, encontro uma banquinha onde se viam gravuras, pequenos objetos e anéis.
Percebo o retrato em litografia de uma mulher linda, do século XIX, com o dedo
apoiado no rosto, em atitude típica de intelectual ou artista, como usavam, ao
posar. Num pequeno pedestal ao seu lado, qual não é a minha surpresa, diviso o
busto de Lizst! Reparei melhor nos cabelos louros e no rosto branco, bem
destacados, habilmente, na gravura em preto e branco. Não tive dúvidas: era
Adèle. Aquilo me causou imediata emoção. Aproximei-me e examinei a gravura, na
sua moldura antiga, não encontrei nenhuma indicação, nenhum nome, nem do
gravador, nem do modelo. Mas não havia dúvida. Perguntei o preço, e a moça
comerciante, aproximou-se de mim e, surpreendentemente, como uma cigana,
segurou a minha mão esquerda, e abriu-a como para ler a minha palma. Colocou
nela um anel, me pareceu, e fechou-a, segurando-a para que eu não o olhasse
agora, e deu-me o preço da gravura. Fiquei tremendamente intrigada. Peguei a
gravura, e olhando a moça nos olhos, por um momento, afastei-me e fui para casa
carregando o quadro sem mais olhar para ele. Quando estava perto do apartamento
de Jean, ou, melhor dizendo, de casa, lembrei-me de que, surpresa, eu tinha
esquecido de pagar o quadrinho à cigana. Pensei em voltar, mas achei que podia
deixar para o dia seguinte. Eu tinha de preparar o almoço para o meu Jean, que
deixava todo dia o consultório para almoçar comigo em casa. No ap, em meu
quarto, pus o quadrinho sobre a cama, e lembrei-me de abrir a mão esquerda,
afinal, que doía em torno do objeto. Era um anel, estranho, belo, de prata,
antigo, com uma pedra que não identifiquei. Olhei o seu aro, internamente e
estremeci: “Para Adèle, Carpeaux”. Quase caí para trás
A cigana me dera aquilo! O que ela vira em mim? Ela teria percebido Adèle?
Estaria ela devolvendo-me o que era meu, conscientemente? Aquilo era demais.
Amanhã eu iria ter com ela, sondá-la, resolver aquele enigma. Eu continuava a
ser assombrada por Adèle, mas não podia, na verdade me revoltar. Afinal, eu
encontrara Jean, encontrara a felicidade conjugal, e queria estar sempre
repleta do amor branco do meu marido... Eu fazia auto-ironia. Era incorrigível.
Mas isso é que me salvava. Isso e o temor permanente de me mediocrizar, tinham
me impulsionado toda a vida, como artista. E eu não podia mais continuar
abdicando da minha incoercível vocação. Adèle não permitiria. Percebi, então,
subitamente, o sentido de tudo isso! Adèle era minha cúmplice, minha aliada! Eu
tinha de olhá-la por este ângulo, esta é a verdade. A artista maravilhosa que
havia dentro de mim, era ela: Adèle, née D’Affry, duquesa Castiglione-Colonna.
Apoiei o quadrinho contra um castiçal na minha mesinha de cabeceira. Jean
ficaria impressionado. O que ele diria? O anel, por alguma secreta razão, eu
esconderia dele. Amanhã eu procuraria a cigana.
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Jean não se cansava de olhar a gravura. De perto, de longe. Chegou a pegar uma
lente de aumento, pois cismou que na pupila de Adèle, ele poderia ver refletido
o rosto de Carpeaux. Como não conseguiu, foi comprar um conta-fio, lente de
ourives ou gravador, pois dizia que era uma questão de grau de ampliação.
Lembrei-me do filme Blow-Up, de Antonioni, e fiquei também curiosa com essa
possibilidade. Mas, claro, aquilo não era uma foto, e com o aumento só se
conseguiu ver a textura arenosa do “grão” da pedra litográfica.
Enquanto isso, eu escondia o anel que Carpeaux dera a Adèle, pois não queria
consagrar com aquele anel a nossa aliança, essa era a verdade. Eu pensava cada
vez mais em escapar, malgrado meu amor por Jean. Até mesmo para preservar o meu
amor por ele... eu precisava partir. Só temia a dor, a dor. A dele e a minha...
nessa separação inexorável. Não, isso não seria uma rejeição, um abandono
destrutivo daquela Bianca Capello a um seu amante. Eu queria preservar o nosso
amor, e sabia que isso nos causaria uma dor... quase insuportável. Comecei a
fazer as malas secretamente... e chorava enquanto o fazia.
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Voltei àquela feira, mas não consegui encontrar a banquinha da cigana. Ninguém
sabia dela. Com isso eu não contava... mas reconheço que era de se esperar. Tais
ciganas só aparecem para transmitir algo, ou fazer um vaticínio fatídico. Pelo
menos nos filmes ou nos romances. Como sou muito impressionável, fiquei mais
abalada e confusa do que nunca.
Retornando à casa, e estando sozinha, peguei a lente conta-fio, para examinar o
anel. Queria descobrir mais algum indício, se possível. Observei a inscrição,
mas esta nada mais continha, além dos nomes. Mas... a pedra! Comecei a
examiná-la, e qual não foi a minha surpresa quando percebi que dentro do
cristal estava ... a cabeça da Górgona! Eu a via claramente sob a lente. Era
invisível a olho nu, talvez um pontinho ínfimo. Mas ampliado... era
terrificante! Distinguia-se claramente até mesmo as serpentes nos cabelos. E
seus olhos eram terríveis! Temi, por minha vez, transformar-me em pedra. Que
queria dizer aquilo? Como pudera Carpeaux perceber aquilo? Ou fora
involuntário? Certamente ele conhecera esta Górgona, a Medusa, obsessão de
Adèle, que a esculpira em tamanho natural, e a proclamara em si mesma. Eu
estava cheia de medo. O que mais temo nesta vida é a possibilidade do Mal...
dentro de mim mesma. É o único que realmente me assusta. Tudo se passa dentro,
estou certa, deste cristal misterioso que é a nossa alma. Tudo o mais é Maya,
ilusão... Sempre acreditei nisso. O próprio mundo é um fenômeno subjetivo.
Depende totalmente da nossa visão. Por isso pode-se ser feliz... ou infeliz,
neste mesmo mundo. Caleidoscópio. Eterno jogo de inversões.
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Terminei de fazer a mala, com as últimas roupas por cima, úmidas das minhas
lágrimas. Coloquei-a junto à porta e permaneci de pé, imóvel esperando por ele.
Jean entrou e vendo-me ali, e àquela mala, ficou lívido imediatamente.
Estendeu a mão no ar, e ela tremia. Ele sufocava. Afinal murmurou:
—Alma, não... não. Não faça isso. Eu lhe imploro, Alma, não!
Agarrou a mala e correu para dentro. Abriu-a e despejou as roupas sobre a cama.
Gritava:
—Eu não deixarei! Você não pode me deixar. Você me mata! Você me mata!
Eu tremia, embargada. Eu não imaginara que seria assim... tão penoso. Abracei-o
forte, enquanto esse homem maduro chorava como uma criança. Disse-lhe:
—Jean, Jean, ouça-me. Eu não deixei de amá-lo. Eu não deixarei nunca de amá-lo.
É necessário, Jean, que eu me vá. É necessário... Você deve saber. Você deve
compreender.
Jean soluçava, agarrado a mim. De repente, afastou-se, permaneceu em pé,
estático, paralisado, imóvel, em estado de choque.
Recuei lentamente, olhando-o, olhando-o sempre, até chegar à porta, e de
repente voltei-me e saí. Sem a mala, sem nada.
Estava decidida a não mais retornar.
FIM
01/06/2006
Pithie- escultura em bronze de 1870, de Marcello (Adèle D'Affry, duquesa Castiglione-Colonna).
Grand Foyer do Opèra de Paris.
Marcello
Primeira parte da Trilogia Mítica- (I)Perséfone), de Alma Welt
Acabo de regressar de Paris, onde expus minhas telas com relativo sucesso.
Reentro em meu atelier, na região dos Jardins, com aquela saudade e a
satisfação do retorno e do dever cumprido para comigo mesma... Entretanto,
estou ainda sob o efeito de um acontecimento insólito que ocorreu nos últimos
dias da minha estadia na capital francesa.
Estava eu numa soirée do Opéra, para assistir um grande evento, a ópera Carmen,
numa montagem deslumbrante, a que tinha sido convidada por um casal de amigos
brasileiros, cultores desse tipo de espetáculo, desde o nosso maravilhoso
Municipal, por sinal, inspirado naquele teatro.
No Grand Foyer, entre toda aquela gente belíssima (o “tout Paris”, como se
dizia em outros tempos), nos seus vestidos de “haut couture” e ternos
impecáveis, de repente me vejo diante de uma espantosa escultura em bronze,
instalada num nicho, representando uma mulher sentada, em movimento frenético,
os seios nus, com uma perna encolhida e a outra pendente do pedestal, elegante
apesar da fúria dos seus movimentos, com um braço semi estendido, a mão em
movimento de sofisticada garra. A cabeça voltada, serpentes vivas nos cabelos
como a Medusa, rosto irado, com a boca aberta num grito que quase se podia
ouvir naquele Foyer. O vestido era leve sobre a pele, maravilhosamente
drapejado no bronze. Um “chef–d’oeuvre” , sem dúvida nenhuma. Enigmática,
clássica, bela, dramática. Senti uma pancada na alma, com o assomo de uma
memória antiga, esquecida. Aproximei-me fascinada, para observar os detalhes
e... procurar a assinatura . Encontrei-a na base da escultura, no pedestal, que
era uma trípode( devia tratar-se portanto de uma Pítia ou pitonisa). Mas eu já
sabia muito mais que isso, antes de encontrar a assinatura: MARCELLO. Eu sentia
que conhecia cada detalhe daquela escultura, de uma maneira tão profunda, como
se ela na verdade emanasse de mim mesma, de um passado remoto, desconhecido em
mim. Que mistério era esse? Como podia ser isso?
Após o espetáculo, que assisti entre a perturbação e o devaneio, pedi ao casal
amigo que me deixasse no hotel, não queria esticar a noitada. Eles ficaram
decepcionados, queriam comentar a montagem, as vozes, a encenação original, que
normalmente me deslumbraria, sendo uma das minhas óperas favoritas. Mas
desculpei-me, pretextando um enorme cansaço, fruto das emoções acumuladas do
meu vernissage e da experiência daquela noite. Não insistiram mais e deixaram-me
no hotel, despedindo-se carinhosamente. Flora, minha amiga, tocou meu rosto na
despedida, com um ar intrigado. Fez um gesto circular com o dedo ao retornar ao
carro, como sinal para que eu telefonasse no dia seguinte.
Cheguei exausta, realmente, e lancei-me na cama após fazer desabar meu longo,
calcado aos pés, na ante-sala da minha suíte. Adormeci logo, profundamente,
para encontrar-me com o sonho que eu pressentia e que queria apresentar-se:
Vi-me num salão congestionado de pessoas elegantes, mulheres riquissimamente
vestidas em amplos vestidos armados, e jóias faiscantes. Homens de casaca,
abandonando suas cartolas e bengalas nas mãos de pagens, à entrada. Estes,
vestidos com casacas vermelhas demodées e cabeleiras brancas de um século
anterior (somente os pagens). Os homens, com colarinhos altos e casacas
escuras, tinham uma sofisticada elegância, um dandysmo ostensivo. Alguns
fumavam charutos em salões contíguos, para esse fim, afastados das senhoras.
Estávamos em meados do século XIX, eu identifiquei. Eu acompanhava com o olhar,
em meu sonho, uma mulher deslumbrante, saudada, cumprimentada por todos,
cortejada, bajulada mesmo. Chamavam-na duquesa. De repente ouvi o seu nome na
boca de um interlocutor: ADÈLE. Ela trocava palavras com homens e mulheres, com
desenvoltura e “aplomb”. Percebia-se o seu grande cosmopolitismo. Demorou-se
conversando sobre escultura com um homem maduro, sempre com economia de
palavras, em frases curtas, evidenciando um certo mundanismo, como convém num
ambiente social: sem discorrer. Tudo isso se apresentava e ficava claro, em meu
sonho, como se eu descortinasse um fragmento de sua vida, que insinuava todas
essas informações básicas, mas insatisfatórias. Tanto que acordei com uma
sensação de vazio, de insuficiência, ansiando por encontrar-me novamente com
aquela personagem. Que queria dizer isso tudo? Por quê ela se apresentara a mim
através daquele sonho, após o impacto da minha descoberta de uma obra
escultórica, no foyer do Opéra?
Chamo pelo interfone o petit-déjeuner no quarto, e quando este chega, para
minha surpresa, vem acompanhado de uma corbeille de flores, lindíssima, com um
cartão:
“Pour la demoiselle du Grand Foyer, l’admiratrice du Marcello, plus belle que
la Pythie, et beaucoup plus suave,
le tribut de m’admiration, bien comme l’invitation pour un café.Je vous
attendre, ici bas, dans le foyer, le temps que vous rendre nécessaire."
Fiquei excitadíssima com a surpresa e a idéia da pequena aventura psicológica
de um encontro inesperado e tão galante. Somente estranhei um pouco a expressão
“ici bas” que quer dizer “neste mundo”, e não simplesmente “aqui em baixo”.
Tomei uma ducha rápida, naquele cabo que parece um telefone, que sai das
banheiras deste país. Porque será que eles não fazem uma coisa mais prática, como
nós? Sim, porque eu percebi que os franceses, agora estão se banhando com mais
freqüência, talvez devido ao preço exorbitante dos perfumes. Ou a um aumento na
temperatura média do planeta, devido ao efeito estufa. Será? Por falar nisso,
como será o cheiro desse cavalheiro, que me espera lá em baixo? (Sorri, e fiz
uma careta ao espelho, imaginando aquele ranço conhecido, de muitos dos
franceses, misturado à sobreposição de perfumes acumulados).
Vesti-me rapidamente, passando o nosso bom desodorante brasileiro, que trago
sempre comigo. Passo um escova rápida nos cabelos e saindo pego o elevador para
o térreo. Ao abrir a porta, sinto-me logo observada e vejo um homem maduro, de
têmporas brancas, aproximar-se. Ainda a uma certa distância, tive um novo impacto.
Eu já vira aquele homem! Aquele semblante, aquelas têmporas, eu as
reconhecia...do meu sonho! Adèle, a duquesa, falara com este homem sobre
escultura, e ele, no sonho discorrera brevemente, com grande conhecimento. Era
um escultor!.. no sonho. Mas, por quê? Por quê isso? O que está acontecendo?
Ele parou diante de mim, olhando-me fixamente nos olhos. Sua estatura mediana,
sua testa alta, seu nariz muito grande, mas perfeito, os lábios finos e a ponta
do queixo proeminente, faziam o retrato típico do intelectual francês.
Cumprimentou-me beijando-me a mão que lhe estendi. Ele disse:
– Mademoiselle Alma, meu nome é Jean-Baptiste e considero um privilégio
conhecê-la. Estive agora há pouco na galeria para ver as suas obras. Tiveram
que abri-la especialmente para mim: fiz-me passar por um colecionador. Afinal,
era um pouco cedo...Mas minha visita só confirmou a minha intuição ao vê-la
ontem, no Opéra. A senhorita é uma grande artista, e uma escultora nata, que
ainda não esculpiu. Seu senso de volumes e de espaço é notável, embora seu
colorismo seja também bastante convincente...e exuberante, como se espera de
alguém que vem dos trópicos. Mas surpreendeu-me, vindo de uma jovem loura como
uma walquíria e com um sobrenome como o seu : Welt, não é mesmo? Mundo...Será o
seu palco, sem dúvida, ou seu “salon”, melhor dizendo...Mas, venha comigo, vou
lhe mostrar um café aqui perto, onde Cocteau costumava freqüentar com Marais, e
onde muito antes, Baudelaire escrevia seus poemas numa mesa que ostenta ainda a
sua assinatura, desconfio que falsa. O dono é um homem muito simpático, que
adora artistas, como seus antepassados. Diz que seu avô foi dono do Album
Zutique, muitos anos, antes de o leiloarem. Ali estava as “Cores das Vogais”,
de Rimbaud, e tantas outras coisas. Bem, Paris é um repositório de estórias sem
fim, menos apreciadas hoje, por essa geração americanisada . Você sabe, meu
pai, deputado, pouco antes de morrer fez um projeto de lei que punha barreiras
à invasão da cultura americana, na tentativa, a meu ver desesperada, de salvar
a nossa. Foi tachado de fascista. Outro dia cheguei à casa de amigos casados e
fui cercado por crianças de revólveres na mão, brincando de Matrix. Seria
melhor, é claro, que estivessem vestidos de Astérix e Obélix, não é mesmo?
Mas... estou tagarelando... não é meu feitio: a senhorita, por alguma razão, me
deixa perturbado. Na verdade, já sei porquê...
Sorri, intrigada, e diante da cadeira que ele afastou, numa mesinha de calçada,
olhei para dentro do tal café, desejando conhecê-lo por dentro. Jean-Baptiste,
então, pegando-me no braço, introduziu-me no recinto, um tanto escuro, mas
cheio de quadros, e apresentou-me ao gerente dizendo:
– Olá, Martin, esta é Alma, a artista, brasileira. Uma pintora de mão cheia.
Soberba. Mas, seu patrão não está, não é mesmo? Queria apresentá-la.
– Bonne journée, mademoiselle – disse Martin—Je suis enchanté. Esta é uma casa
de artistas, há gerações, sinta-se na sua. Querem ser servidos aqui dentro ou
lá fora?
– Lá fora, Martin, está um pouco escuro aqui dentro para esta brasileira solar
, não é mesmo?
Enquanto Martin olhava intrigado os meus cabelos louros, Jean-Baptiste levou-me
de volta á mesinha da calçada comentando: —- Lá dentro há um Modigliani
autêntico, trocado pelo pintor por bebida, com o avô do proprietário. Já
ofereceram fortunas e o Laurent recusa-se a vender. Até o museu do Beaubourg
quis comprá-lo. Mas o louco do Laurent acha que o quadro produz um certo
sortilégio na casa e o mantém no escuro, quase invisível. Como disse, esta
cidade é cheia de estórias e idiossincrasias. Na verdade estou farto e sonho
todos os dias com praias tropicais que não tenham sido pintadas sequer por
Gauguin. É irônico, para mim, conhecer uma brasileira branca e loura como uma
alemã, como você. Os trópicos fogem de mim, e acho que não sobreviverei a mais
um inverno parisiense, se não conseguir escapar a tempo.
Observei Jean-Baptiste, sua palidez típica, enquanto ele acendia um cigarro.
Pensei comigo: “é isso que vai acabar com você. Cigarro e céu escuro, de
chumbo, são uma fórmula mortal...” Disse-lhe:
– Jean, venha ao Brasil, mostrar-lhe-ei nossas praias, se você parar de fumar.
Essa é a condição.
Jean Baptiste olhou-me surpreso, desconcertado. Apagou o cigarro no cinzeiro,
pedindo desculpas, meio atrapalhado.
Dei uma risada e disse: —-Jean-Baptiste, bastou uns minutos em sua companhia,
para eu tomar essa liberdade de criticá-lo. Desculpe-me. Mas é para seu bem.
Você me parece um tanto pálido e ansioso por sol e saúde. Fale-me de você.
Jean-Baptiste olhou em volta, depois nos meus olhos, abaixou os seus e disse:
– Alma, sinto que já a conheço, há muito tempo. Bastou vê-la no Grand Foyer e
isso não me sai da cabeça. A sensação de conhecê-la... profundamente. Porque?
Nunca conheci uma brasileira antes, embora sonhe com as praias do Brasil, o Rio
de Janeiro, você sabe...Uma vez vi um documentário de Carnaval e pensava que
todas as brasileiras eram negras. Atraí-me profundamente pelo Samba, aquele
ritmo, aqueles passos. Também pela pele escura das mulheres e homens, que me
lembram os bronzes da casa de meus pais, mas somente na cor, certamente. Aquilo
tudo são deuses e deusas gregos, não sei porquê fazem uma pátina tão escura.
Enfim, é tudo convenção... e tradição. Você sabia que os gregos pintavam suas
estátuas de cores vivas? A cor não resistiu ao tempo. Bem, é uma teoria... não
é seguro. Mas, estou divagando. O fato é que estou um pouco confuso com a
emoção que sua pessoa me causa, desde ontem. Tive um sonho esta noite... não
sei se devo contar...
– Conte, Jean, eu lhe peço. Também tive um sonho estranho em que... mas depois
conto-lhe o meu. Fale, fale.
– Bem, após a minha visão de você, no Foyer, quase me aproximei. Você estava
tão linda, admirando aquela escultura com uma atenção que não se vê por aí...
Percebi que você estava profundamente emocionada, o que é raro de se ver nesta
cidade de blasés locais e turistas levianos. Você parecia querer tocar e
acariciar aquela estátua e seus dedos pairavam, percorrendo algumas formas, sem
tocá-las. Na verdade, fez bem em não fazê-lo pois havia um guarda do Opéra que
a vigiava, pronto para dar o bote. Ai de você, se o tivesse feito: nós
franceses somos muito agressivos com certas coisas, e intolerantes. É disso que
estou farto...entre outras coisas. Bem, como dizia, fiquei observando-a e me
senti comovido também, de uma maneira extraordinária, eu, que já nem reparava
mais nessas estátuas... Mas era o confronto... você sabe, você e a estátua, a
sua relação com ela, que me comoveu. Se eu tivesse me aproximado naquele
momento( e eu tinha um bom pretexto), o encanto teria se partido. Eu quebraria
a relação, interromperia o ato mágico. Fiz um esforço para não abordá-la.
Preferi segui-la disfarçadamente, de automóvel, até a porta do seu hotel.
Esperei uns minutos e com um pretexto, fui ao balcão da recepção e consegui,
com um pequeno suborno, a informação sobre a moça loura que estava ali
hospedada. Uma brasileira! E artista! Chamada Alma! Soube que expunha na
galeria Miroir d’Art, de propriedade de uma outra brasileira., chamada Ceres.
Fui para casa, ansioso pelo dia seguinte para visitar sua Exposição. Mas tinha
medo de me decepcionar. Adormeci, afinal, e sonhei o seguinte:
Eu estava no recinto de um enorme atelier, envidraçado parcialmente por cima,
diante de um molde em gesso de uma escultura complicada. Um conjunto de figuras
que representava um velho, sentado, com crianças de sexo masculino agarradas ás
suas pernas, em agonia, enquanto ele, o velho, parecia roer os próprios dedos.
O gesso era todo desmanchado, rebocado, espatulado como um esboço,
expressionista avant-la-lettre, de uma dramaticidade extrema. Reconheci o tema
de Ugolino, da Divina Comédia de Dante (o conde condenado à morte pela fome,
juntamente com seus filhos). De repente, aproximou-se de mim uma moça
belíssima, com cabelos pretos e pele muito branca, elegantíssima em seu amplo
vestido, e começou a cobrir-me de elogios pela minha obra (Dei-me conta, ao
acordar, que eu seria o escultor, o autor daquilo). Ela pousou a branca mão no
meu braço respingado de gesso e eu a tomei nos braços. A emoção fortíssima que
me tomou, fez-me acordar, frustrado. Daria tudo para continuar aquele sonho.
Tentei voltar a dormir para continuar daquele ponto, mas foi em vão: eu acabava
conduzindo por vontade cenas que não pareciam verdadeiras, não era mais real
como o sonho. Você sabe, Alma, sou psicanalista, esqueci-me de contar isso.
Nós, desde Freud, seguimos seu axioma: O SONHADO SÓ SE REFERE AO SONHADOR . Na
verdade, sou seguidor de Jung, que mais que todos concorda com isso com o mestre
com o qual rompeu, embora ele abra exceções para grandes sonhos coletivos,
arquetípicos, em geral tribais. Visto isso, estou inclinado a crer que a mulher
do sonho era a minha Anima, enquanto o escultor, certamente era eu em minha
totalidade relacionando-me com minha Anima diante da minha vida, isto é, a
criação artística que tinha como tema , o pai, impotente diante da carência
básica de seus filhos. Que filhos? Eu mesmo e meu irmão, em nossa infância
faminta de afeto, diante de um pai responsável , mas severo e avarento.
Entretanto, acordei associando a imagem feminina do sonho à moça, que eu vira
no Opéra, e que embora loura, tinha nítida semelhança de traços, e sobretudo de
atitude admirativa diante da obra de arte. Ou seja, você.
Quando soube seu nome, tive mais um impacto. Você entende, Alma?
Fiquei tremendamente emocionada. A imagem de Jean-Baptiste em meu sonho, o
escultor com quem a moça conversava no salão, em alegre camaradagem, pareceu-me
mais nítida. Era ele, sem dúvida. Tratava-se de saber o nome completo do
escultor, já que o da a moça do seu sonho deveria ser o mesmo que eu ouvira no
meu, isto é: ADÈLE.
– Jean-Baptiste, tudo isso é notável. Há grandes coincidências em nossos
sonhos. A mulher que eu seguia por imensos salões, conversando sobre Arte, era
também morena, de pele clara, e conversava sobre escultura com um homem
idêntico a você. Pareciam ser muito amigos. Havia um certo carinho em suas
atitudes. Quando o vi no saguão do hotel, tive um choque de reconhecimento.
Mas, estou pressentindo agora o significado de tudo isso. Creio que será fácil
descobrirmos o sentido dos nossos sonhos...e do nosso encontro. Vamos procurar
uma biblioteca. A Bibliothèque Nationale, de preferência, que deve ser mais
acessível que os arquivos do Louvre, imagino. Adoro pesquisas. Vamos começar
logo?
–Também creio que será fácil, Alma. Nem precisamos ir á Bibliothèque Nationale.
Na casa de meu pai, na sua biblioteca, há o Bénézit. Deixe-me dar um
telefonema. Sou um pouco cerimonioso com a viúva, minha madrasta. Aguarde-me,
volto logo.
Estranhei um pouco ele não ter, aparentemente, um celular consigo, para ligar
dali mesmo, da nossa mesa, mas logo compreendi que ele queria privacidade nessa
ligação, pois não se dirigiu sequer ao interior do Café e sim a uma cabine
telefônica ali perto. Voltou logo, satisfeito, dizendo:
– Alma, falei com Corinne, minha madrasta, que simpatiza comigo, na verdade bem
mais do que o velho, outrora. Foi muito receptiva ao telefone. Pode receber-nos
com prazer, ela disse, agora mesmo.
Jean-Baptiste pagou a conta adicionando o “pour-boire”, e nos dirigimos para
uma ruela próxima onde estava estacionado seu automóvel. Dirigimo-nos para um
bairro chic, na Rive Droite, muito arborizado e paramos diante de uma grande
mansão, um verdadeiro chateau, em estilo neo-clássico. O grande portão de ferro
se abriu, misteriosamente, pois Jean não precisou anunciar-se. Subimos a
alameda de cascalho e paramos diante da escadaria, onde nos esperava uma bela
senhora de lindos cabelos brancos tratados. Notei-lhe o olhar intenso e
extremamente inteligente. Examinou-me rapidamente, mas com simpatia. Após os
cumprimentos e a minha apresentação, fomos introduzidos. Jean-Baptiste conhecia
bem a mansão, naturalmente. Afinal, era a casa de sua infância e juventude.
Observei rapidamente que a casa era cheia de esculturas de bronze por todo
lado. Havia também algumas de mármore branco de Carrara. Sempre clássicas,
belíssimas. Grupos, figuras solitárias, bustos, tudo. Figuras mitológicas e
históricas, nus e algumas até, de animais. Algo que merecia uma visita
especial. No entanto tive de acompanhar Jean-Baptiste até a
biblioteca-escritório. Por alguma razão meu coração doía, eu não sabia porquê.
Jean-Baptiste foi direto a uma estante onde se encontrava o Bénézit, no mesmo
lugar desde a sua infância. Reparei que eram oito volumes, mas logo a minha
atenção foi atraída para uma estatueta de bronze, que estava sobre a mesa de
trabalho ou leitura. Tratava-se de um retrato de Liszt, belíssimo. Estremeci ao
reconhecer no pedestal a assinatura MARCELLO. Dei um pequeno grito de surpresa
e prazer, que atraiu a atenção de Jean. Ele voltou-se, já com um volume na mão
. Eu apontei–lhe a estatueta, exclamando:
– Jean, Jean, é um MARCELLO!
Jean sorriu, respondendo:
– Sim, Alma, nós costumávamos, meu irmão e eu, usar esta escultura para quebrar
nozes sobre a mesa na época do Natal. Pobre Liszt. Devia tremer no túmulo. Eu
sabia que era um Marcello. Mas nunca me ocorreu, naquela época, conferir no
Bénézit, quem era esse escultor. Era um santo de casa, não fazia milagres.
Apenas um quebra-nozes. Vejamos agora: Marcello, voir Castiglione-Colonna (
duchesse Adèle de).
Jean depositou o volume de letra M e retirou o de letra C. Lá estava:
“ Castiglione-Colonna ( duchesse Adèle de) née d’Affry, dite Marcello,
sculpteur et peintre, née a Fribourg ( Suisse) le 6 juillet 1836, morte à
Castellamare le 16 Juillet1879 ( Ec. Ital.)
O seu verbete, não muito longo, falava naquele busto de Liszt (o que me
comoveu) e na sua Pythia ( adquirido por Garnier no Salon de 1870, para o Grand
Foyer du Opéra de Paris). Falava também na sua criação de um museu próprio, o
Museu Marcello, incorporado depois pelo Museu de Fribourg, na Suissa.
Imediatamente projetei visitar com Jean ou sozinha, aquele museu.
– Jean, Jean -disse eu- Marcello é uma mulher, Adèle D’Affry, duquesa
Castiglione-Colonna. É como se eu já soubesse disso, não sei porquê. É ela,
Jean, que eu vi no meu sonho! Andando por aqueles salões, linda, rindo e
conversando com os homens, mais do que com as mulheres...conversando com você..
digo, com o escultor que se parecia com você. Eles pareciam tão íntimos, havia
tanta camaradagem, um certo carinho até... não sei. Devo estar imaginando...
Não sei mais onde acaba meu sonho e começa minha imaginação. Jean, Jean , o que
quer dizer tudo isso?
Jean-Baptiste também estava emocionado e com um certo brilho molhado nos olhos,
respondeu-me:
– Alma, lembra-se da frase de Jung: “ O sonhado se refere ao sonhador” ? Adéle
era você. Se não você não a teria visto antes de saber de sua existência ...
Foi uma reminiscência, Alma, algo de que a sua alma se recordou. Um fragmento,
um episódio do cotidiano de Adèle, em sua glamurosa vida. Isto está claro,
agora. Quanto a mim, devo ser, no seu sonho, o amigo de Adèle, o mesmo escultor
que vi em meu sonho, no meu próprio atelier, e em cujos braços Adèle caiu.
(Jean ofegava cada vez mais, comovido) -Alma, Alma,eu já a amava como Adèle, é
isso!..perdoe-me .( Jean se retraiu subitamente envergonhado com o seu
derramamento ).
Enterneci-me, e pousei minha mão no seu braço. Ele permaneceu extático, com o
olhar brilhante, fitando-me ardentemente.
– Jean, devemos investigar mais um pouco-( eu também estava ofegante )- Isso
tudo é muito estranho. Nunca antes eu tinha ouvido falar nessa escultora, no
Brasil. Eu sei, por isso mesmo... Fui atraída por uma escultora clássica. Eu,
uma pintora moderna e brasileira, ainda por cima. Não faz sentido...Por outro
lado, ela me atrai poderosamente. Eu quase me identifico...com ela. Porquê?
Porquê? Aquela Pythia é tão violenta, o contrário de mim como mulher. Mas as
formas, a obra em si, me atrai como se...eu pudesse tê-la feito? Não, não, isso
é loucura! Não quero pensar nisso. Tenho mêdo...
– Alma, você fingiu não ter me ouvido. Eu já disse e agora repito: eu já a
amava como Adèle. Isso está bem claro para mim. Preciso saber somente que
escultor era esse, que eu fui... e que você amou também. Não, não fuja, Alma.
Não premeditei nada disso, também estou perplexo. Mas disso não recuo mais: eu
a amo, Alma, agora e sempre, desde aquela época. E não me permitirei perdê-la
novamente, por um século e meio.
Eu estava quase desfalecendo. Queria fugir dali, ou atirar-me em seus braços,
mas algo me impedia. O romanesco da situação era tão intenso, que me revoltava
e exigia minha ponderação. Disse-lhe:
– Jean, algo me impede de envolver-me assim , abruptamente como você quer.
Preciso saber mais. Quem era Adèle, afinal? Quem sou eu? Já não sei mais.
Porquê Liszt sempre me atraiu tanto? O que foi ele para Adèle? Sinto que
preciso saber tudo. Agora leve-me ao hotel, eu lhe peço. Não posso mais com
essas emoções, sinto que se permanecer, vou acabar desfalecendo. Vamos, leve-me
agora.
Nesse momento, voltamo-nos para a porta e vimos que Corinne, a madrasta, nos olhava
intensamente. Ela falou:
–Perdoem-me ouvir o final de sua conversa. Estou também impressionada .
Permitam-me que os ajude nessa pesquisa. Há outros Marcello pela casa. Como
aquela Bacante Exausta, lá no salão. Era um dos escultores preferidos do seu pai,
Jean, você deve saber disso. No fim da vida ele teve um breve namoro com a
escultura de Camille Claudel, mas que não substituiu sua preferência. Afinal,
seu pai apreciava o clássico, sobretudo. Mas ele nunca se referia a Adèle, era
sempre Marcello. No entanto ele sabia tudo sobre seus escultores. Seu pai era
um homem muito culto, você sabe. Um erudito, mesmo. Mas... deixem o resto da
pesquisa comigo ou deixem-me participar dela. Preciso de distração. Desde a
morte do meu marido convivo com estes fantasmas. Agora vejo que eles podem ter
um novo interesse. Vou xerocar o verbete imediatamente, para vocês e para mim,
está bem? Agora vou levá-los até o carro. Alma não está se sentindo bem. Quer
alguma coisa, querida? Um chá. Ou uma taça de vinho?
Fiquei imensamente grata a Corinne. Ela me abraçou carinhosamente, quase como
uma mãe. Aninhei-me por uns segundos, em seu peito. A simpatia dessa mulher me
cativara. E ela estava ali por alguma boa razão, eu intuía. Aceitei um copo de
vinho que tomei um pouco avidamente e dirigi-me para a porta. Antes quis ver a
tal Bacante. Aquilo acabou de me exaurir. Despedi-me de Corinne. Pensei naquele
momento que não a veria mais. Entrei no carro e partimos. Durante o trajeto
preferi o silencio, que Jean-Baptiste respeitou. Deixou-me no hotel e partiu um
pouco frustrado. Certamente queria que eu lhe tivesse caído nos braços como no
seu sonho.
No quarto do hotel, atirei-me sobre o leito e adormeci um sono de pedra, sem
sonhos.
De manhã bem cedo o telefone tocou na minha cabeceira. Era Jean-Baptiste que me
saudava com entusiasmo, logo comunicando:
– Alma, já sei o nome do escultor. Foi muito fácil identificá-lo pela escultura
do Ugolino. Corinne encontrou-a num livro, ela fez um bom trabalho de pesquisa:
seu nome (pasme) era Jean-Baptiste Carpeaux, um grande nome da escultura
francesa do século XIX. Adèle deve tê-la admirado enormemente, e a ele
pessoalmente, também. Sei que eles se amaram... embora ele fosse bem mais velho
que ela. Ela morreu relativamente jovem, aos 43 anos, de tuberculose, quatro
anos depois dele. Era tida como uma das mais belas e fascinantes mulheres do
século, e de longe, a maior escultora. Jovem viúva, talentosa , bela,
encantadora, titulada e rica. Ela tinha tudo. Uma diva. Uma musa. Ela se
considerava a reencarnação de Bianca Capello, uma femme-fatale da Renascença.
Ela admirava ou se identificava com a Górgona e com Ananke, a personificação do
Destino. Alma, necessito vê-la, logo, você está me ouvindo? Alô, alô, Alma,
deixe-me vê-la ou enlouquecerei.
Eu ouvia em silêncio e respondi: —- Jean, está bem , espere-me naquele Café.
Naquela mesma mesa, está bem? Mas somente dentro de uma hora . Como? Está bem,
40 minutos. Tomaremos o café da manhã ali, mais uma vez. A última? Não, não
disse isso, calma, Jean. Aguarde-me , sim?
Em quarenta minutos cravados estava eu naquela mesa, em frente a Jean, que
pusera um uma flor num copo, comprada de um garoto na rua . Isso me fez lembrar
o Brasil. Ai, que saudade do meu atelier nos Jardins, na rua Oscar
Freire...Jean devorava-me com os olhos, e tentou segurar-me as mãos sobre a
mesa. Recolhi-as disfarçadamente. Na verdade estava envolvida com ele, não por
ele. Não me sentia apaixonada...Havia um espectro entre nós, eu sentia. Mas não
sabia o nome desse espectro. Era isso certamente o que mais me perturbava. Jean
começava a delirar, já não conseguia mais se conter e declarou-se loucamente
apaixonado por mim, antes mesmo do café da manhã ser servido, tirando-me
totalmente o apetite. Como podia eu sorver o café com leite e tudo mais, diante
daquele olhar febril? Perdoem-me, estou sendo irônica com o pobre Jean. Mas eu
sentia que precisava me defender. Não posso me entregar assim ao primeiro
escultor do século XIX que me declare a sua paixão( aqui vou eu, novamente...)
– Adèle, Alma, case-se comigo. Eu irei ao Brasil com você. Comprarei um grande
atelier para você no campo, na praia, onde você quiser. Deixe-me fazê-la feliz.
Eu me dedicarei a você e à sua arte, para sempre!
– Jean – disse eu — você está sendo precipitado. Você mal me conhece, não sou
Adèle, sou Alma, e sou uma provinciana, uma brasileira. Não se deixe iludir por
esse sonho. Depois, quem lhe disse que eu não sou feliz? Sou, e muito! Essa é
uma qualidade de que não abro mão. Teria muita vergonha de ser infeliz. A
infelicidade, estou convencida, é falta de virtude. É a presença dominante de
defeitos de caráter. As coisa boas não produzem dor e... (calei-me, eu estava
divagando, começava a exagerar, eu estava me defendendo, racionalizando,
pontificando.)- Bem, Jean, não é nada disso. Deixe-me pensar. Preciso respirar,
tudo isso é tão espantoso e precipitado! Preciso de mais tempo. Vamos continuar
a nossa pesquisa, sim? Preciso entender porquê me atraí pela Pythia, porquê
sonhei com Adèle, antes de saber quem era Marcello, porquê você sonhou com ela
também, e porquê, sobretudo, a estatueta de Liszt agora não me sai da cabeça.
– Alma, -disse Jean- vou pedir aquela estatueta à Corinne. Sei que ela não vai
me negar. Mas não sei se a darei a você ou vou direto jogá-la no Sena. Tenho
ódio agora dessa estatueta. Parece que ela me afasta de si. Bem que ela sempre
esmagava o pequeno cérebro das nozes... Ela continua, agora, esmagando o meu.
Perdoe-me, estou sendo ridículo. Preciso conter-me.
Olhei-o nos olhos. Ele estava quase delirante. Aquilo me incomodava. Pedi
licença para ir ao toilette. Martin saudou-me com a cabeça e apontou-me o
reservado. Aproveitei para olhar o Modigliani de perto e admirei-lhe o
maravilhoso nu reclinado. Agradeci a Deus por ser mulher e também bela como
essa. Esse pensamento me equilibrou novamente e me deu forças. Pude pensar em
Adèle enquanto fazia xixi, voluptuosamente. Ela estava muito próxima, eu a
sentia cada vez mais. Senti-me apaixonada por uma Adèle apaixonada por...
Liszt! Essa é que era a verdade. A beleza do rosto de Liszt! A perfeita mistura
de virilidade e doçura, do masculino e feminino, nunca antes tão bem dosados
num rosto masculino. Perto dele, Napoleão e Julio César tinham rostos
desequilibrados, excessivamente aquilinos ou ligeiramente femininos, não sei ao
certo. Liszt deveria estar próximo também, já que me sentia apaixonada
novamente por ele. Novamente, eu disse? Que sei eu? Preciso saber mais... Ou já
sei tudo? Arre! Estou exausta de tanta ambigüidade, tantos mistérios em minha
alma.
Enxuguei-me com prazer e voltei á mesa sem lavar as mãos. Não sei porquê fiz
isso. Sou uma fêmea, queria eu demarcar meu próprio corpo como território? Que
idéias absurdas percorriam-me a cabeça! Jean-Baptiste beijaria minhas mãos...
Quando retornei, não encontrei mais Jean na mesa. Havia um bilhete sob a xícara
de café:
“Alma, perdoe-me, não estou suportando. Preciso retirar-me da sua presença,
pois estou sofrendo demais. Sua rejeição está me matando, e isso não é uma
chantagem. Sinto-me morrer à míngua , como Ugolino. Aguardarei à distancia o
tempo de reflexão que você está me exigindo. Perto, sou capaz de fazer uma
tolice, ou de devorar minhas próprias mãos. Ligue-me quando tiver chegado a uma
conclusão definitiva. Só não me ligue para dizer “não”. Prefiro esperar o resto
dos meus dias .”
28/05/2006
________________________________________
O Retorno de Adèle
Segunda parte da Trilogia Perséfone, de Alma Welt
Ceres liga-me, de Paris e pede-me o meu retorno para tratarmos de uma espécie
de turnê da minha Exposição, por outras cidades da Europa, até mesmo algumas
capitais. Dou pulos de excitação e alegria, com a cabeça a mil, fazendo planos.
Penso que será a oportunidade de dar uma esticada ao Museu de Fribourg, na
Suissa, para ver o acervo do antigo Museu Marcello.
Na verdade, não deixei mais de sentí-la dentro de mim, a ela, Adèle D’Affry, a
duquesa Castiglione-Colonna. Ela está presente em estranhas inquietações e
devaneios, e também numa espécie de sensualidade malévola, que tenho agora de reprimir,
em relação aos homens e mulheres que se envolvem em minha vida. Por quê Adèle
tem isso? Uma tendência dispersiva no amor, uma indiferença destrutiva, embora
involuntária, aparentemente ingênua. Não quero ser assim... Respeito demais o
ser humano, e isso, nela, me horroriza. Será a presença daquela Bianca Capello,
por sua vez,. dentro dela? Uma “femme fatale da Renascença”... lembrei-me das
palavras do pobre Jean-Baptiste. Como estará ele? Minha indiferença, voltando
ao Brasil, sem mais procurá-lo, espanta a mim mesma, agora , ao pensar nisso.
Começo a arrumar as malas e a tratar da passagem e do novo visto no passaporte.
No consulado francês, fui tratada com deferência especial ao verem o catálogo
da minha exposição. Outro nível, estes franceses, esta é que é a verdade.
Também, estou encantada com os prognósticos, e essa alegria e otimismo ilumina
meu rosto, abrindo-me todas as portas.
Afinal, no dia e hora marcados, estou no avião a caminho de Paris. Durante a
viagem, uma moça, francesa, de retorno de férias no Brasil, sentada ao meu
lado, puxa conversa, com uma simpatia incomum nos franceses. Diz-se encantada
com os brasileiros, em sua temporada no Brasil, e pergunta-me, sempre em
francês, se estou voltando para a Alemanha. Sorri, e digo-lhe que não, sou
apenas descendente de alemães de Santa Catarina, por parte de pai. Ela lamentou
não chegar até o extremo sul do nosso país, desta vez, prometendo a si mesma,
voltar. Logo põe-se a contar uma espécie de romance que teve com um baiano, em
sua estadia em Salvador, e o encantamento com a cultura afro-brasileira daquela
cidade. Os franceses ficam doidos com aquilo, o verdadeiro exotismo brasileiro,
que tanto procuram. Lembrei-me de Gauguin, no Tahiti, procurando a alma
primitiva em si mesmo... e quase encontrando, apesar de tudo... Apesar de sua
vitimização nesse processo. A propósito, contei a Annie, a belíssima cena de
uma versão cinematográfica americana, da vida de Gauguin, em que , diante de
sua filha Aline, na Dinamarca, retornando do Tahiti, durante uma dolorosa
visita à sua família, o pintor é perguntado pela menina:
– Papai, o que é um gênio?
E o pintor responde: –“ Filha, um gênio é um homem que faz algo extremamente
necessário à humanidade, algo de que ela não pode prescindir.”
E Aline, então:–“Você é um gênio, papai?”
Gauguin, após uns segundos, respondeu:–“Não sei, filha, acho que estou tentando
ser...
E Aline: –“ Papai, eu posso ajudar você nisso? Posso, papai?”
Então Gauguin, com um brilho úmido nos olhos, disse:
–Pode, Aline, você pode.
–Como, papai, como?
—“Basta que você, quando tudo estiver muito ruim... quando nada parecer estar
dando certo comigo, quando ninguém mais acreditar, você continue acreditando em
mim. Sempre acreditando... Você estará me ajudando.”
Caí em prantos, de repente, abraçada por Annie, que com os olhos úmidos também,
naquele momento decidiu ser minha amiga para sempre, eu senti.
Depois deste derramamento, em que expus precipitadamente a minha alma de
artista, resolvi conter-me e prestar mais atenção a essa francesinha, que me
conta uma perturbadora aventura tropical, encerrada após uma procissão marinha
da Nossa Senhora dos Navegantes, ou Iemanjá, em que diante da impossibilidade
de pertencer totalmente ao universo do seu amante baiano, recuou ante a visão assustadora
de tantos Orixás naquela alma, e repeliu-se a si mesma dos braços daquele
príncipe negro, que a engolfavam como um abismo. Voou para São Paulo, como uma
transição, antes de retornar à sua antiga Gália, agora, neste avião.
Eu tinha tanto que dizer-lhe, sobre tudo isso , mas preferi deixá-la com suas
próprias conclusões, talvez mais apropriadas. Tanto mais que ela me passava a
impressão de guardar uma outra paixão, esta sim, grande e dolorida, anterior, e
que nada tinha a ver com a sua aventura tropical, que teria sido pura tentativa
de escape. Minha alma é também tão confusa, e mais ambígua ainda em suas
heranças: germânica, brasileira e ainda portuguesa, por parte dos antepassados
maternos... Sem falar naquela Adèle, suissa, com sua carga de paixões e de
amores passados, que sinto carregar dentro de mim, como um segredo que por
enquanto manterei, exceto para os meus invisíveis leitores.
Sinto que posso me confrontar com ela, em pessoa, de algum modo, e que tudo me
prepara para isso, inexoravelmente. Claro, não sei prever como ou quando isso
se dará, mas...
Ao pousarmos em Orly, Annie agarrou-se a mim, e afirmou não querer mais
perder-me de vista e fazer questão de me acompanhar até o meu hotel em Paris e
de dar-me o seu endereço. Dizia que a minha amizade era agora vital para ela.
Após a viagem de Orly até Paris, em que tornamo-nos mais íntimas, despedimo-nos
com um forte e estranhamente comovido abraço, no saguão do hotel, ela
prometendo procurar-me logo no dia seguinte, para levar-me a conhecer sua
família, e almoçar, com eles.
Depois de um repouso no meu quarto, o mesmo em que estive da outra vez, começo
a ordenar os pensamentos e a fazer planos. Organizo a pasta de novos desenhos e
idéias, para mostrar para Ceres, na Galeria.
De repente, penso, sem querer, em Jean-Baptiste, e tenho a tentação de
procurá-lo, embora isso seja arriscado, pois não sei se suportarei o seu
assédio novamente... ou a ausência dele. Essa ambigüidade me envergonha, parece
vir da alma de Adèle, dentro de mim. Que quero eu, ou ela, do pobre Jean?
Atormentá-lo mais ainda? Por quê, toda a vez que estou com ele, penso em Lizst?
Justamente para me afastar dele? Hei de tirar tudo isso a limpo, agora, nesta
temporada em Paris. Creio mesmo, que só por isso retornei, na verdade, e que as
exposições são mais um pretexto que qualquer outra coisa.
Telefono para a Galeria e falo rapidamente com a filha de Ceres, cuja voz me
soou familiar. Uma jovem que não conheço, meio distante. Terá ela uma alma
brasileira? Sendo o pai francês, e tendo nascido e sido criada aqui... Bem, não
vem ao caso. Marco encontro a uma determinada hora na Galeria, mas penso antes
passar na livraria Erebus para procurar um livro sobre Adèle, e sobre Jean-
Baptiste Carpeaux, se possível.
Chego na livraria com bastante antecedência da hora do meu encontro para
justamente poder procurar à vontade, e pesquisar.
Qual não é a minha surpresa quando, de repente, ouço a sineta da porta soar e
vejo Jean-Baptiste entrar, um cigarro na boca, meio curvado como sempre, e dirigir-se
ao livreiro dizendo:
— Olá, Bertrand, encontrou o livro que lhe encomendei? Tem que ser ilustrado,
lembra-se? Meu ensaio está adiantado, mas preciso daquela ilustração,
urgentemente.
— Não, Jean, ainda não encontrei-o . Eu lhe disse que o avisaria, assim que o
encontrasse. Que impaciência, Jean! Vocês escritores pensam que a literatura se
faz em seis dias. Enquanto isso, veja este livro que garimpei, sobre
escultores, escrito, veja, por seu pai, ainda antes que você nascesse. Pena que
as ilustrações são muito mal fotografadas. A técnica desse tipo de fotografia,
para realçar os volumes, ainda era muito ruim naquela época. O que se poderia
fazer hoje, com um acervo assim, hem? Reconheço algumas obras da sua casa. Elas
ainda estão lá? Bem, você não mora mais lá, há muitos anos, mas Corinne não
vendeu nada, não é mesmo? A propósito, ela esteve aqui, fazendo uma pesquisa
sobre uma escultora, acho que a mesma em que você está interessado. Vocês estão
juntos nisso? Que mulher a sua madrasta, hem? Lembro-me dela moça ainda, uma
verdadeira beldade. Foi um caso de amor tórrido, entre eles, não é mesmo?
Eu ouvia atrás de uma estante, com o coração batendo forte. Nesse momento, não
agüentei mais e saí daquele corredor e aproximei-me do balcão onde os dois
conversavam. Jean-Baptiste deixou cair o cigarro da boca, que, na verdade
estava apagado, pois não seria permitido entrar fumando ali. Arregalou os olhos
e agarrou-me puxando-me para si. Abraçou-me com tal força, que quase me
sufocou.
–Alma, Alma, você... não acredito. Você voltou! Você voltou!
–Sim, Jean, mas não esperava jamais encontrá-lo tão facilmente, assim...
Ouvi a conversa de vocês. Pelo jeito você continua perseguindo...digo,
procurando Adèle, não é mesmo? Bem, eu também, esta é que é a verdade.
–Mas, Alma... bem, essa é Alma, Bertrand. Uma artista brasileira, notável...e
uma grande amiga. Adeus, Bertrand, ponha o livro do velho na minha conta.
Depois nos falamos. Preciso conferir com Alma alguns pontos da minha pesquisa.
Depois lhe explico.
Mal tive tempo de estender a mão para o Bertrand, e fui puxada para fora por
Jean-Baptiste, excitadíssimo, que queria logo sentar-se comigo naquele café,
naquela mesma mesa de sempre.
Dirigi-me primeiramente ao interior para cumprimentar o Martin, que foi menos
efusivo do que eu esperava. Na certa já me considerava uma destruidora de
corações, tendo o Jean-Baptiste lhe confidenciado alguma coisa, deduzi. Os
homens são assim... quando são bons. Dei uma olhada no Modigliani, e voltei à
mesa onde Jean-Baptiste já se sentara, agitado, mas tentando se acalmar.
–Alma, Alma, você aqui , novamente, devo estar sonhando. Queria tanto revê-la,
sonhei tanto com isso! Queria me desculpar por aquele bilhete idiota... pela
minha fuga. Agi como um covarde. Tinha tanto medo de sofrer, mais do que já
estava sofrendo. Mas não quero aborrecê-la, falando naquilo. Alma, como você
está? Maravilhosa, estou vendo. A julgar pela sua aparência, você deve estar
feliz, como sempre aliás...Sabe, Alma, isso é o que eu mais admiro em você. Essa
sua alegria tranqüila, essa candura... numa mulher tão inteligente.
—Ora, Jean-Baptiste, não vá começar a lisongear-me, que a vaidade é o meu
principal defeito, e caio na sua armadilha a torto e a direito. Mas aceito suas
desculpas e até agradeço, na verdade, aquela sua fuga, pois eu precisava também
de um afastamento para poder coordenar os pensamentos... e os sentimentos.
–Então, Alma. Fazem já seis meses que nos despedimos e de lá para cá, minhas
pesquisas não progrediram muito. Corinne encontrou mais uns dados sobre você,
digo, sobre Adèle, e também sobre Carpeaux, mas nada que resultasse numa grande
revelação consoladora. Não estive no Museu Marcello, tinha esperança no seu
retorno para visitá-lo em sua companhia. Mas encontrei um catálogo de suas obras,
fantástico. À propósito, Corinne me presenteou a estatueta de Lizst, que tenho
agora em meu consultório, sobre a mesa. Outro dia, comprei um dos primeiros
sacos de nozes da temporada, para quebrá-las com ela, em sua honra, quando você
pisar no meu consultório, pela primeira vez. Depois farei você deitar-se no meu
divã, freudiano por sinal, nada junguiano, e hei de ouvi-la num fluxo
espontâneo, de confissão, para entender uma ou duas coisas misteriosas, para
mim, a seu respeito. Que tal? Não? Está bem, estou brincando. Na verdade você
não poderia jamais ser minha analisanda, estou envolvido de outra forma. E
depois, nunca se
viu uma pessoa feliz, no analista, não é mesmo? Não, não estou sendo irônico, é
o que eu acho, mesmo. Mas Alma, fale-me de você .
–Jean, depois daquilo tudo que se passou conosco já não sou mais a mesma. Adèle
parece estar subindo, devagarinho, e tenho medo dela me tomar por inteiro. Isso
é assustador, pois ela me parece muito diferente de mim, quero dizer, do que eu
suponho que eu seja. Adèle é cruel com os homens, embora apaixonada como eu.
Ela parece não se importar com o sofrimento deles. Enfim, é uma lilithiana,
enquanto eu sou uma filha de Eva. Tenho horror à crueldade, à indiferença, à
destruição. Vejo agora, claramente o porquê daquela Píthia, do Marcello, no
saguão do Opéra. Aquela pitonisa está claramente rejeitando um devoto, bloqueou
a trípode sentando-se nela, ameaçando-o com sua garra no ar. Não, não quero ser
assim em minha alma.
Na verdade, vim para revê-lo, Jean-Baptiste, e deixar-me levar pelos
acontecimentos. Mas antes preciso rever Corinne. Ela apareceu-me, recentemente,
num sonho, chamando-me enquanto eu ouvia um espantoso canto de sereias,
amarrada como um Odisseu de saias, a um mastro. Como Euricléia, na Odisséia, a
voz dela dizia que você corria perigo, pois era assediado por uma Fúria,
disfarçada de pretendente feminina, em torno de uma Penélope de calças, que era
você. Eu sei, é confusa essa inversão de papéis, e até um pouco ridícula, mas o
sonho era assim. Passei a dar-lhe mais valor em minha alma, Jean, por isso vim
pedir-lhe que me perdoe e...
– Alma, Adèle. Sim, sim, venha comigo. Meu consultório fica aqui perto e
podemos ir a pé, chega de viagens, nada de veículos, muito menos de naves.
Caminhemos de mãos dadas, se você permitir.
Saímos logo daquele Café e deixei-o pegar na minha mão. Caminhamos assim, como
dois namorados. Meu coração começou a bater muito forte, e quando chegamos à
porta do seu prédio eu já estava zonza, como embriagada. Apoiei-me no seu braço
e entramos no saguão para pegar o elevador, daqueles antigos, como uma gaiola
art-nouveau. Ele depois abriu a porta do seu consultório e avistei logo a mesa
com a estatueta de Lizst. Corri para ela, segurei-a, logo recoloquei-a sobre a
mesa. Virei-me e Jean-Baptiste prensou-me contra a mesa e deitou-me sobre seus
papéis. Ergueu minhas pernas bem alto, sem que eu resistisse, embora um pouco
espantada, e arrancou-me a calcinha. Desabotoou a braguilha, e tirando para
fora seu enorme mastro, imobilizou-me enquanto eu ouvia o canto alucinante de
mil sereias em meu cérebro. Deixei-o fazer o que quisesse. Ele ficou longamente
navegando, entrando e saindo de dentro de mim, numa fome de séculos, numa
viagem de retorno, numa peregrinação ao lar, que sei eu?...E explodiu num
orgasmo imenso que me inundou como a última vaga produzida pela nave que chega
ao porto de partida.
Caiu então, sobre o meu peito e ficou assim, imóvel algum tempo, dentro e sobre
mim. Depois escorregou, afastou-se e caiu sentado sobre a poltrona de consulta,
e ficou olhando fixamente entre as minhas pernas, minha vagina aberta, que
escorria. Deixei-o também fazer isso. Eu queria toda a passividade, toda a
receptividade que pudesse lhe dar. Isso me produziu uma nova volúpia, de
oferenda, de entrega. Eu precisava disso. Isso me apaziguou depois de tanto
tempo de luta interior.
Foi preciso Jean-Baptiste levantar-se e fechar as minhas pernas, ou eu ficaria
assim para sempre.
Depois, pegou a minha calcinha do chão, e devolveu-ma, novamente tímido,
desajeitado. Pisei no chão, vesti-a, lentamente, enxugando com ela minhas coxas
escorridas. Ah! Como tudo isso continuava a ser voluptuoso, embora ligeiramente
constrangedor...
Jean-Baptiste conduziu-me à sala contígua, a das sessões, e fez-me deitar no
divã. Sentou-se atrás de mim, na poltrona e disse:
–Vamos agora dormir um pouco e sonhar. Quero reencontrá-la como Adèle, e contar
a ela o meu encontro com a Alma. Sei que ela sorrirá...
....................................................................................
No dia seguinte acordei no meu quarto de hotel e preparei-me para ir à Galeria.
O telefone toca enquanto tomo o desjejum no quarto. Penso logo ser Jean, mas,
para minha surpresa, é Ceres, saudando-me e dizendo:
–Alma, você não imagina quem está aqui ao meu lado. Um fã seu. Acaba de comprar
o quinto quadro da sua exposição, que ele namorou muito tempo, hesitando entre
esse e outros. Você precisa conhecê-lo, ele faz questão de esperá-la aqui .
Você vem logo? Ele quer comentar coisas que ele descobriu hoje nessa pintura e
nas outras também. Venha, querida. Você está pronta?
–Sim , Ceres, já estou indo. Dentro de poucos minutos estarei aí. Peça para ele
me esperar. Quero conhecê-lo, também.
Em minutos estava eu entrando na Galeria e logo dou de cara com Jean-Baptiste
me esperando ao lado de Ceres. Ele também abriu os braços, mas deixei-me
abraçar por Ceres, carinhosamente, denunciando sua brasilidade persistente.
Jean, um pouco travado, não seria capaz de um abraço assim. Estava um pouco
tímido, especialmente depois da nossa intimidade súbita no seu consultório.
Aproximei-me dele, que tocou meu rosto, para surpresa de Ceres, que nada sabia
sobre nós. Confusa, intrigada com seu gesto, apresentou-me Jean, dizendo:
– Alma, este é Jean, seu mais novo e entusiasmado colecionador. Acaba de
adquirir o quadro seu, vinte e cinco do catálogo, e que ele batizou Pythie. Ele
me convenceu da presença nestas manchas, de uma pítia, que acabei enxergando. É
um louco maravilhoso, você vai ver. Espero que vocês se gostem tanto quanto ele
gosta da sua pintura. Já carregou quatro outras, do acervo, remanescentes da
sua exposição. Insiste em que eu a convença a fazer esculturas, o que não acho
má idéia. Fala sempre no seu “senso de volumes e de espaço”. Acho que ele tem
razão. Mas... vocês parecem já se conhecer, estarei enganada?
–Não, Ceres, você não está enganada. Mas isso é uma longa história, não vem ao
caso. Jean conheceu-me, numa viagem, onde nos encontramos e agora estamos nos
revendo, com surpresa. Pelo jeito ele não havia ligado esta pintora à viajante,
quem sabe... Não é mesmo, Jean?
–Sim, Ceres –disse Jean–Alma não me é estranha, na verdade, mas jamais pensei
que a bela viajante pudesse ser esta pintora aqui. Ela me deu outro nome, se
bem me lembro. Acho que era Adèle, não é mesmo, Alma?
Ou coisa parecida. Acho que ela não confiou em mim, naquele trem, e deu-me um
pseudônimo. Mas, por quê ela deveria confiar num desconhecido que a abordou
atrevidamente no corredor de um trem-leito, rumo a Fribourg, não é mesmo? Eu
pensava que se tratava de uma alemã ou suissa , em viagem de retorno. Jamais
poderia supor tratar-se de uma brasileira, e pintora tão talentosa. Muito menos
que eu me tornaria seu colecionador.
Ceres, espantada, disse: —“ Mas que história fascinante. Que coincidências.
Isso é fantástico. Minha filha adorará essa história. Ela é louca por
coincidências ou “sincronicidade” como ela diz, junguiana fanática e aluna de
psicologia. Logo Annie estará aqui. Chamei-a para conhecê-la, Alma. Da outra
vez, ela estava em férias, justamente na Alemanha, quando da sua exposição,
lembra? Não tivemos tempo para nada, durante aquela pequena temporada, com a
montagem da exposição, e tudo.
Fiquei arrepiada com a menção do nome de Annie, e boquiaberta. Ceres notou e
disse:
—O que é, Alma? Você está estranha, embora pareça bem. Não me diga que já
conheceu Annie também, nalguma viagem. Não me admiraria, sua bruxinha
brasileira. Você parece ser uma feiticeira de mão cheia, Alma.
Nesse momento tocou o telefone. Era Annie dizendo não poder vir,
desculpando-se. Ceres pareceu desapontada e também desculpou-se pela filha,
dizendo:
—Não saberei desta vez, se houve mais uma sincronicidade. Mas não faz mal, haverá
outra oportunidade. Ela está por uns dias em casa novamente e eu quero
convidá-los para almoçar lá, amanhã, está bem? Assim todos se conhecerão, ou se
reconhecerão, não é mesmo?
Ceres era arguta, e não se deixava enganar facilmente. Percebi que ela não
engolira a história de Jean, do trem, muito verossímil para ser verdade. Ela
finalizou:
— Agora preciso ir para casa para receber meu ex marido que vai lá chorar um
pouco e rever sua filha. Espero-os em casa, amanhã, ao meio-dia. Que tal? Está
bem?
Concordamos e despedimo-nos, enquanto Ceres nos levava até a porta da Galeria,
dizendo que depois nos encontraríamos no fim da tarde para acerto de contas e
planejamento da turnê.
Saí com Jean, e disfarçamos um quarteirão, para, ao dobrarmos a esquina, nos
agarrarmos com sofreguidão.
—Alma, Alma—ele balbuciou entre beijos avassaladores— Vou enlouquecer de
alegria, desde ontem encontro-me no céu. Depois de deixá-la, ainda me masturbei
duas vezes, pensando em você, não me envergonho de dizer isto. Estou estourando
de amor e de desejo. Jamais esperei tanta felicidade, Alma, você me salvou a
vida. Você me salvou a alegria de viver! Desde ontem não fumo, você notou? Não
fumarei mais. Você me inebria. Estou embriagado de você, deusa! Venha, vamos
para o meu apartamento, é perto daqui. Você reparou, tudo está perto, seu
hotel, meu consultório, a Galeria e meu apartamento... Venha, venha.
Andamos três quarteirões, ofegantes de impaciência e emoção. Subimos um lance
de escada, ao chegarmos, ele abriu a porta para um espaçoso apartamento de
intelectual, que mais parecia uma biblioteca. Mas não tive tempo de reparar nos
detalhes. Ele atirou-se sobre mim, arrancando minhas roupas e as suas, quase
rasgando-as. Nua, atirou-me de quatro sobre um tapete fofo, e penetrou-me afoitamente
por trás. Na verdade foi atrás mesmo e a seco. A dor foi lancinante, mas eu não
protestei. Somente gritei de dor, num prazer agônico que me estarreceu. Eu
precisava do sofrimento? Essa pergunta me ficou, depois, por bastante tempo. Eu
me desconhecia. Mas esse desconhecimento me fascinava. Eu era misteriosa para
mim mesma e Adèle ainda podia ocupar-me toda, ainda por cima, com as
possibilidades de uma nova vida, deslumbrante.
Mas nesse momento estava eu ali, como uma cadela, feliz no meu sofrimento
físico, senão moral. Ele ofegava em cima de mim com sofreguidão, indo e vindo
até o sangue escorrer pelas minhas coxas. Depois de um violento orgasmo que o
sacudiu, saiu subitamente, novamente olhando-me demoradamente por trás, de
quatro, devassada. Tive então um orgasmo tardio sob o seu olhar, que finalizava
o serviço. Não me envergonharei jamais disso tudo. No amor tudo é belo, tenho
certeza disso.
Demorei para erguer-me, levantei-me sobre uma perna, depois sobre a outra, meus
joelhos dobraram novamente, e caí de bruços, sem forças. Eu me sentia
maravilhosamente estuprada. Serei eu uma masoquista? A dor era tão grande... e
eu queria fruí-la. Se ele agora me possuísse novamente, eu não reagiria, e a
idéia não me repugnava. Eu quisera ser virada do avesso, literalmente. Talvez,
para sair do meu corpo sem abandoná-lo, sem renegá-lo, o maravilhoso corpo!
Devo ser doida. E mais ainda de contar isso tudo aqui. Mas o leitor é um ser
abstrato: eu não o olho nos olhos. É uma espécie de confessionário onde não vemos
o rosto do confessor, nem mesmo a sua voz. E há a volúpia do escabroso, do mais
íntimo em nossa confissão. Fique aí, leitor, não se afaste. Neste conto eu
contarei tudo, sem reservas, mesmo que você me julgue mal. Não quero saber do
seu julgamento. Dê-me somente seus olhos sobre estas páginas e sua visualização
de minhas aventuras e do meu corpo, voluptuosamente martirizado, em sua mente.
Eu me delicio só em pensar em você, seu grande voyeur!...
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Dormi no seu apartamento. Pedi a Jean somente que avisasse a portaria do hotel,
para caso alguém me procurasse, para telefonar para ele. Acordei no dia
seguinte com o corpo moído e com dores terríveis naquele lugar. Como poderia
almoçar em casa de Ceres? Ainda mais que fiquei sabendo que ela telefonou para
Jean , para saber de mim, e ele abrira o jogo. Como poderia conhecer sua filha,
Annie? E se ela fosse a Annie do avião? Eu precisava estar bem. Não podia andar
direito. Tentei e parecia uma grávida de último mês, andando como uma pata, as
pernas meio abertas. Ai, que vergonha! Comecei a ter um pouco de raiva do Jean,
mas logo afastei esse sentimento, resolvida que estava ao insólito, ao inusual,
à aceitação incondicional das circunstâncias daquele relacionamento
excepcional.
Tomei um demorado banho de assento, frio. Bem que os franceses foram os
inventores do bidê. Agora sei por quê ...
Perto do meio-dia, sinto-me pronta para arriscar o almoço em casa de Ceres.
Morro de curiosidade em encontrar-me com essa Annie. Será ela?
Saí com Jean me amparando, com dificuldade de andar, quanto mais de descer e
subir escadas. Jean está constrangido e envergonhado e pede-me desculpas a toda
hora. Ontem, ao desculpar-se, em seguida ao ato, inclinei a cabeça sobre o seu
pênis e beijei-lhe a ponta. Ele sorriu, intrigado, e nada mais falou. Agora
está de novo arrependido, consternado, amparando-me nesta escada como um marido
com a pata choca da esposa grávida. Isso me fez sorrir, com um esgar, entre
dores.
Tocamos a campainha e Annie abriu a porta. Era ela. Caímos nos braços uma da
outra como as maiores e mais íntimas amigas. Mas logo ela pareceu surpreender-se
em ver Jean, ali comigo. Pareceu subitamente constrangida e até contrariada.
Fiquei imediatamente intrigada e corri o olhar de um para outro. Ah! Esses dois
já se conheciam, e muito bem! Quanta sincronicidade! Mas havia aqui um grande
mal estar da parte de Annie, pelo menos. Será que é o que estou pensando? Vou
conferir isso com Jean, logo, logo.
Ceres recebeu-nos vestindo um caftan marroquino que lhe ficava muito bem. Essa
mulher era fascinante, de uma independência e autonomia admiráveis, e parecia
adorar a filha, mas com um respeito e desprendimento ideais. Já Annie, estava
perturbada demais, olhando-nos muito, nos olhos. Eu queria tanto que ela me
olhasse novamente como o fizera no avião, quando nos conhecemos e nos abraçamos
pela primeira vez, em lágrimas!... Jean, você vai me pagar,(eu pensei). Você
aprontou alguma. Esta moça está sofrendo, é visível. E você é um cara-de-pau,
vindo aqui comigo, seu grande sacana (eu pensava). Seu estuprador... Você fez
isso com ela também? Dei um sorriso involuntário. O que me salva é o meu senso
de humor, já dizia meu pai, desde minha infância. “Não se leve muito a sério”,
adoro esse lema trazido para mim, na forma de tabuleta, de uma sala de AA por
um amigo alcoólatra.
O almoço seria maravilhoso, não fosse o mau estar de Annie, que nos olhava
perturbada, e talvez com um certo ressentimento, eu percebia. Ceres segurava as
pontas com seu “aplomb” invejável, tanto mais que devia perceber tudo, sagaz
como era. Por meu lado, disfarcei bastante, da maneira mais fácil para mim, que
era olhar muito os quadros nas paredes, que realmente me fascinavam. Veio-me
mais uma vez aquela consciência do meu amor, acima de tudo, pela arte. “ A arte
é tudo, o resto é nada”, escreveu Eça de Queirós. Ah! como eu concordava com
isso apesar das minhas dispersivas paixões! Lembrei-me das últimas palavras do
grande Camille Corot, no seu leito de morte: “ Espero que no Céu, haja
pintura.” Meus olhos encheram-se de lágrimas, que não puderam ser entendidas,
pois nesse momento Jean contava a Ceres sobre a coleção de seu pai, de
esculturas, e sobre a impressão que lhe causavam na infância. Fazia isso com
aquele humeur francês, que é
impossível descrever. Uma auto ironia, muito diferente da dos judeus, por
exemplo, também maravilhosa. Como definir esse humor? Uma sutileza psicológica
refinada, um certo dandysmo do espírito, e sobretudo um certo spleen, naquele sentido que Baudelaire
dava a essa palavra, uma mistura de tédio e auto complacência consciente,
deliberada. Rimos muito, e Annie até sorriu um momento, quando vislumbrei em
seu rosto, o amor profundo que ainda nutria por Jean. Mas a mágoa teimava em sombrear
seu rosto. Quando quis ir ao toilette, ela prestou-se a me acompanhar.
No banheiro ela olhou-me demoradamente, e abraçou-me em prantos, soluçando.
Dizia:
—“Alma, Alma, era você desde sempre, era você. Eu devia saber, eu devia ter
percebido quando a conheci. Uma pintora, bela e sensual. Uma brasileira, como
minha mãe. Era tão fácil fazer a ligação. Esse homem me torturou com a sua
imagem, sempre presente, até em seu sono. Aquilo era cruel, por si só, e quando
ele me queria, só fazia aumentar a dor. Quando me possuía, era brutal, pois
queria atingir alguém, através e além de mim. E doía demais!” (Pensei no que
Jean fizera comigo, e ficou claro que era o seu estilo, digno discípulo do
Divino Marquês, que ele era. )
Caímos nos braços uma da outra e choramos juntas, ela de dor e amor perdido, eu
de pena e amor por eles, acreditem. Que podia eu fazer, que devia eu fazer?
Lembrei-me do meu propósito de não reagir às circunstâncias, de deixar fluir,
como me ensinou, uma vez um mestre chinês de acupuntura, que eu consultara, e a
cujo tratamento me submetera. O fluir do Tao. Essa era verdadeira sabedoria...
Quando deixamos aquela casa, eu tinha combinado encontrar-me com Annie no meu
Hotel, à noite, para ela me contar tudo, para desabafar. Eu temia apenas me
decepcionar com o Jean, saber alguma coisa mais grave em sua personalidade do
que o seu hábito de sodomita contumaz (perdoem-me o cinismo, mas era isso
mesmo...)
Jean deixou-me no hotel, com um beijo apaixonado e mais um pedido de desculpas
que calei em seus lábios com a ponta dos meus dedos. Deixou-me na porta do
elevador. Subi para o meu andar, caminhando lentamente no corredor e quase não
consegui chegar até a porta do meu apartamento.
Naquela noite fui acordada pelo interfone anunciando a chegada de Annie. Aquilo
foi penoso no início, pois interrompera-me o sono. Bateu à porta e levantei-me
com esforço, lamentando não ter deixado a porta destrancada. Abri e ela
adentrou aos prantos, atirando-se em minha cama. Inclinei-me sobre ela e
beijei-lhe as costas. Mas logo decidi deitar-me também, ao seu lado, e puxá-la
ao meu peito, para acolhê-la, fraternalmente, quase maternalmente.
Mas meu corpo doía demais e escorreguei da cabeceira para estender-me com um
esgar de dor e em lágrimas. Annie afinal percebeu e olhou-me assustada.
—Ah! Miserável , aquele miserável... ele também a deixou assim. Eu conheço
isso. Eu conheço, vire-se, Alma, eu preciso ver isso. Não se assuste, não tenha
vergonha.
Ela abaixou-me a calcinha e abriu-me as nádegas como um fruto. Fez um chiado
com a boca, horrorizada e disse: —Aquele demônio, fez isso com você também.
Deixe-me tratar disso, vou fazer uma compressa fria. Espere.
Foi ao banheiro, voltou com uma toalhinha molhada , os olhos cheios de
lágrimas, e tratou-me carinhosamente, amorosamente. Dizia:
—Vamos nos vingar desse diabo. Alma, temos de nos vingar. Ele não nos merece.
Alma, não se iluda. Ele é cruel... e mau. Ele só ama um espectro do seu
passado, que não entendo. Ele se vinga em nós, essa é que é a verdade. Alma,
Alma, você não pode apaixonar-se por ele. Ele não a merece, minha querida. Ele
não nos merece .
Pensei em dizer a ela que eu não via as coisas assim. Que aquele espectro não
me era estranho, muito pelo contrário: estava ali, bem dentro de mim, e que
além disso, eu considerava, incrivelmente, a sua brutalidade, um ato de amor
desesperado. A sua fome, a sua carência de um século e meio. A fome de Ugolino
devorando sua própria mão... e também seus próprios filhos.
Não, ela não poderia entender isso tudo. Pareceria loucura aos seus olhos. Ela
veria em mim, somente uma louca apaixonada, cega de amor e de paixão, como ela
mesma ainda era, malgrado seu ressentimento.
Ela permaneceu muito tempo, cuidando de mim, o que me enterneceu prazerosamente,
apesar do meu propósito inicial de consolá-la. Na verdade, sua atitude, por si
só, era verdadeiramente terapêutica para ela mesma, e sentindo isso
abandonei-me aos seus cuidados. Bem mais efetivo do que eu abraçá-la,
afagar-lhe as costas e enxugar-lhe as lágrimas com meus beijos. Minha doce
Annie, minha amiga, meu amorzinho...
Ela adormeceu ao meu lado, abraçadas as duas, sua mão entre minhas nádegas. Eu
me sentia completa agora. Adèle me tomava toda... ou seria eu mesma? Eu sempre
fora assim, há séculos. Eu amo as pessoas que amam, como obras de arte que elas
são, mormente quando sofrem, quando derramam ardentes lágrimas de dor, a
legítima dor do amor, tanto quanto as lágrimas da incomparável alegria.
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Acordei sem a presença de Annie na minha cama ou no apartamento. Encontrei o
seu bilhete:
“Alma, querida, eu amo você e vou vingá-la. Vou vingar-me também. Não tente
deter-me. Esse monstro precisa ser punido. Aguarde noticias. Beijos
Annie”
Fiquei tremendamente preocupada. Esqueci-me totalmente do Tao, e me pus em
grande aflição. Fui banhar-me rapidamente e vestir-me o mais depressa possível.
Sentia que precisava interferir, salvar Jean. Eu devia me apressar. Algo terrível
estava para acontecer, eu sentia, eu temia. Lembrei-me de ligar para Jean. Mas
o telefone tocava, tocava e ninguém atendia. Afinal atendeu a secretária
eletrônica. Disse quase gritando:
—Jean, Jean, saia daí, ou não atenda a porta. Annie está furiosa, Jean. Está
louca. Pode ser perigoso, não atenda, Jean, por favor. Ela quer vingar-se. Ela
vai...
O tempo de gravação, muito curto, esgotou-se. “Matá-lo...”eu murmurei
depositando o fone, em estado de terror.
Saí do apartamento, atirei a chave do quarto no balcão, de maneira intempestiva
e descortês. Não havia mais tempo. Pensei em procurá-la em casa ou na Galeria.
Lembrei-me que descumprira o combinado com Ceres, no dia anterior, no fim da
tarde. Não tinha sido possível. Nada mais seria possível. Eu não queria mais
nenhuma turnê. Não com a minha presença nela, pelo menos. Eu queria salvar Jean
e Annie para mim, os dois, para mim!
Subi afinal, ofegante, a escada de Jean e sentei-me no chão, encostada à sua
porta. Eu barraria qualquer passagem. Se não pudesse permanecer sentada, eu me
deitaria em frente à porta. Eu esperaria ali. Teriam que passar por cima do meu
corpo. Poderia dormir.
.....................................................................................
Fui acordada, sacudida, era Jean, preocupado:
— Alma, o que é isso, minha querida, o que você faz aqui no chão, dormindo?
Você está bem, querida?
Abracei-lhe o pescoço, em lágrimas, dizendo:
—Jean, Jean, você está vivo? Annie não o encontrou, afinal. Jean, vamos fugir,
não é seguro ficarmos aqui. Algo terrível pode acontecer. Não pude controlar a
situação. Não tenho esse poder. O amor de Annie está doente. Ela não perdoa o
desamor, a rejeição sofrida. Ainda mais que você a feriu com sua lança, quero
dizer... Você entende, não? Comigo é diferente. Sou uma louca de outro tipo.
Diferente dela. Que estou dizendo? Não sei mais. Tenho medo, Jean, tenho medo.
Jean pegou-me no colo, levantou-me e carregou-me para dentro, empurrando a
porta. Esta abriu-se estranhamente e demos com Annie, de pé na sala, com um
revolver na mão. Ela estava ali o tempo todo esperando por ele. Ela ainda tinha
a sua chave! O que realmente houvera entre eles? Esse caso era mais sério, eu
via... e agora era tarde demais!
Annie gritou: “Largue Alma, seu canalha, ponha-a no chão ou poderei feri-la.”
Jean, perplexo, depositou-me no chão, mas eu levantei-me e pus-me em sua frente
no momento exato em que ela atirava. A bala atingiu-me com tal impacto que
atirou Jean para trás com o meu choque em seu peito. Tudo foi-se apagando, mas
ainda pude ouvir os gritos de Annie e também os de Jean, enquanto eu descia a
um poço escuro.
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Acordei no hospital , alguns dias depois. Eu estava envolta em ataduras, abaixo
dos seios e a dor era tanta ainda, que gritei, chamando a enfermeira. Esta
apareceu, correndo. Disse:
—Alma, menina, não se mexa, você está bem. Seus amigos estão aí fora, há dias.
Choraram bastante, agora estão felizes. Já sabem que você escapou. E aquela
Madame Corinne, menina! Esteve aqui todos os dias. Mas a mais dedicada foi a
sua marchand, Madame Ceres, não é mesmo ? Esteve muito aflita, parecia sua mãe,
e não poupou esforços e orações a uma santa brasileira, se não me engano, para
tirá-la do buraco escuro onde você estava. Pelo jeito a Santa é forte, olha aí,
o santinho que ela me deu—(apesar da dor, percebi tratar-se de Iansã )— Você é
querida, hem, menina? Precisa contar-me o seu segredo. Também, uma moça tão
bela!
Sorri penosamente, e pedi-lhe sussurrando, que chamasse Jean. Ela disse:
—Claro, menina, ele está aí, o seu amigo. Era o que mais chorava, além de uma
moça que está aí também.
Surpresa, vi Annie e Jean entrarem juntos e cercarem-me a cama, um de cada
lado, agarrando-me as mãos.
—Alma, Alma, - disse Annie - você precisa me perdoar. Não agüento mais, Alma,
você precisa me perdoar. Eu não me perdoo. Eu a amo, Alma, eu a amo tanto, nem
sei bem porquê... Jean já me perdoou. Se ele não o fizesse, eu não chegaria até
aqui: a próxima bala seria minha.
—Pare com isso, Annie - disse Jean- Já nos perdoamos um ao outro. Alma não
precisa sofrer mais. Ela não merece isso. Ela quis salvar-nos, a nós dois, essa
é que é a verdade. Com sua própria vida. Devemos isso a ela. Juntemos nossos amores
sobre ela, que os purificará. Não é mesmo, Alma?
—Sim, Jean (sorri, dolorosamente ) —Deixem fluir a vida. Deixem fluir o amor.
Deixem... tudo fluir...
Adormeci.
29/05/2006
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Corinne
Terceira e última parte da Trilogia Perséfone, de Alma Welt
Passei semanas no Hospital, não sei ao certo quantas. Minha recuperação ainda
assim foi surpreendente, segundo os médicos. Minha enfermeira, Claire,
tratava-me com um carinho especial. Queria saber sobre a minha vida e sobre o
Brasil. Os meus amigos teriam dito a ela que eu me comportara como uma heroína,
e ela então tratava-me com redobrada devoção, que me comovia. Chegou a ponto de
trazer a sua irmã mais nova para conhecer-me, no leito. Uma menina de grandes olhos
perplexos, que pôs-se a chorar subitamente. Afaguei-lhe a cabeça, o que fez
aumentar seu choro. Eu também me comovia com tudo. Estava fragilizada, com
tantas emoções, depois do trauma sofrido. Mas, no entanto, contraditoriamente,
eu me sentia feliz, claro, sobretudo com o desfecho redentor de tudo aquilo.
Jean me visitava todos os dias. Na verdade, não queria desgrudar-se da minha
cabeceira, e o seu olhar, de amor e desejo, me enterneciam. Volta e meia
beijava-me ardentemente e tocava os meus seios, para logo em seguida disfarçar,
com as entradas de Claire, que o despachava, recomendado-lhe que me deixasse
repousar. Quando lembro dessas coisas, reconheço que foi um dos períodos mais
felizes da minha vida. Cuidavam de mim, eu podia descansar de tensões de que eu
não me dera conta até então. As tensões da sobrevivência lá fora, da minha
missão de artista, que eu me impusera tão cedo, a partir de uma data imprecisa
da minha juventude. Dos deveres que eu me impusera na escolha da minha
carreira. Como tudo isso era pesado!... agora eu percebia como quem arreia uma
carga, afinal, com a permissão do Grande Patrão, ainda que temporariamente.
A falta que eu poderia sentir de mãe, já que a minha tinha me deixado tão cedo,
era agora suprida por estas duas maravilhosas mulheres: Corinne e Ceres. Elas
me visitavam todos os dias, e percebi que me disputavam a preferência. Mas,
para mim, elas eram duas maternalidades diversas: Corinne buscando Adèle, e
Ceres, a Perséfone resgatada do Hades, que ela via em mim depois do acidente.
Quanto à Annie, ainda sofria demais. E Ceres não conseguia entender o que
realmente se passava com ela, pois Annie não se abria com ela, por uma razão
que eu pensava saber interpretar. Percebi que Annie temia muito a natureza
tropical de sua mãe brasileira, como um enigma que ela suspeitava tê-la
contaminado, de mistérios e sortilégios de um mundo desconhecido e do qual ela
procurava defender-se. Como tudo isso era complexo!
Jean contara a todos, inclusive à policia, que havia sido um lamentável acidente
entre amigos que se queriam muito, e a policia observando nossas relações tão
carinhosas e emocionadas, tendeu a acreditar rapidamente nisso. Todavia o
inspetor Bernard, ainda aparecia para fazer perguntas, com um ar vago,
pensativo, como se não estivesse totalmente convencido, ou estivesse
simplesmente curioso. Afinal, aproximou-se um dia do meu leito e disse:
–Mademoiselle Alma, há uma questão relativa à sua pessoa, que não foi
solucionada. Trata-se, na verdade, de algo muito íntimo... e constrangedor. O
seu médico, o Dr. Breton, interrogado por mim, e preocupado, como eu pela
mocinha, confidenciou-me algo muito grave. Durante os exames que ele fez no
corpo de delito, quero dizer no corpo da demoiselle, após o atentado, digo,
acidente, que sofreu, foi constatado outro tipo de violência que a jovem teria
sofrido. Sim, segundo o seu médico, trata-se nitidamente, de violência sexual,
ou estupro, mesmo, melhor dizendo. Sei que isso é um assunto delicado, e que a
mocinha ainda está traumatizada e em começo de recuperação. No entanto, o dever
me obriga a insistir neste assunto. Um crime, pelo menos, senão dois, foi
cometido aqui, contra a sua pessoa. A demoiselle não gostaria de falar sobre
esse assunto, ou mesmo prestar queixa contra o agressor?
Fiquei tremendamente embaraçada, e preocupada com Jean. Não queria
comprometê-lo. Além disso, envergonhada de que me tivessem assim devassado.
Como explicar que aquilo fora “estupro consentido”? Haveria isso,
como “figura jurídica”? Ai!... Que vergonha! Como falar disso, de qualquer
maneira, senão com vocês, meus leitores sem rosto? Não sabia o que responder ao
inspetor Bernard. Como uma idiota, respondi, hesitante:
–Inspetor... não sei do que o senhor está falando...
– Mademoiselle, visto que reage assim, vou ser bem claro, me desculpe. Foi
encontrado grandes traços de esperma... no reto da senhorita, que estava num
estado aterrador, segundo o dr. Breton. Poucas vezes se vêm casos assim tão
nítidos de violência anal. Como a senhorita percebe, não podemos passar por
cima desse assunto, ainda mais que ele parece ligado ao caso da senhorita como
um todo. Duas violências juntas contra a mesma pessoa , têm que estar
necessariamente ligadas, não podem ser simples coincidência, não é mesmo?
– Inspetor, pelo amor de Deus, mantenha isso sob sigilo: não houve nenhum crime
aqui. A verdade é difícil de acreditar, mas trata-se de um caso de paixão, de
arroubo, de amantes que se descontrolaram. Tanto mais que essa modalidade é
preferência nacional em meu país, parece que no mundo todo, na verdade...
– Mademoiselle Alma, já que quer assim, nada posso fazer. Mas garanto-lhe,
tenho uma filha da sua idade, e se algum canalha... bem, vou encerrar o caso.
Mas reservo-me o direito da minha opinião: a senhorita está escondendo alguma coisa.
Por isso podem contar com o meu olhar vigilante, mesmo à distancia. Por ora,
fique com meu cartão. Qualquer novo problema me procure. A senhorita é
singular... Bem, espero que tenha uma boa recuperação e sucesso na sua
carreira. Nada entendo de arte, mas sou curioso e fui à galeria e pedi para ver
as suas obras. O enigma só fez aumentar. Passe bem, desejo-lhe felicidade... e
serenidade no amor. Cuide-se, mocinha.
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Quando afinal tive alta, já o caso estava encerrado e Jean queria de todo o
jeito que eu me mudasse para o seu apartamento, dizendo que contratara uma moça
para cuidar do resto da minha recuperação, da minha alimentação, etc. Aceitei
sem mais resistências. Eu iria brincar de casinha, e permitir-me uma maior
trégua na minha carreira e nas tensões que eu tinha descoberto e a que já me
referi. Ia ficar um longo período sem pintar, já que sentia dores quando erguia
o braço direito, que além disso estava enfraquecido. Eu poderia escrever
poesia, quem sabe, como na minha adolescência Lembrei-me de um poema idealista
e simbólico que escrevi aos dezesseis anos, em homenagem a Leonardo da Vinci,
que eu, em minha enorme pretensão de artista, considerava meu mentor espiritual
desde sempre:
Ode a Leonardo da Vinci
Antigos apelos se perderam no tempo
Continuamos sós na solidão...
As planícies se erguem num vôo de águias e de corvos,
Uma floresta de punhais recorta o espaço.
Mas algo nos enfraquece ainda,
Dispersos sob o sol desconhecido e agônico.
Os continentes se cobrem de couraças,
Que já sobrevivemos à Beleza,
Que nossa dor persiste.
Messer Leonardo da Vinci, mestre e pai,
A tua voz lançada nos espaços do Tempo
Chegou até nós, embora ainda indignos,
Mas de antemão redimidos pela tua força.
Todavia, falo por mim só,
Solitários que estaremos sempre...
Em sonhos e delírios sou a discípula bem-amada,
De cujos olhos, dia a dia, intensificas a luz
E a cujo ouvido murmuras sonhos loucos.
Sou a discípula dileta, renascida e pura.
Sou tua procura, teu silêncio,
A nobre curiosidade em teus sentidos,
A tua casta barba afagada na concentração,
E a tua poderosa e alva mão que afaga e cria.
Perdoa, Mestre, não te amei de um perfeito amor:
Como Beltraffio, temi os teus poderes
E a tua sabedoria perturbou-me a alma.
Eras, em verdade, o mago, o bruxo, o grande Alquimista.
Cavalgaste nas noites proibidas,
Rumo ao Sabat dos deuses mortos.
Conhecias a Noite e talvez fosses seu mestre.
Terias transmutado os metais,
Imenso criador de ouro que tu foste.
Nas cidades anoitadas sei que pairas.
Às vezes suponho avistar a tua barba anciã
Novamente transmutada no ouro da tua sábia juventude,
Como um periódico cometa no céu da minha alma.
Mestre, também estou só, procurando na Terra
Enquanto procuras no Infinito
Aquilo que já era teu, pois foste verdadeiramente belo.
Ama-me ao longe, Mestre, e dá-me a tua benção.
Desde a Morada dos Sábios e dos Altos, dá-me a tua benção.
Aqui, nos ossos da feroz maquinaria,
Algo do teu amor lateja e subsiste.
Algo da tua estranha fé renova-nos a face
Consumida nos grandes estrépitos modernos.
Perdoa, pois, ó Mestre, o que fazemos da tua voz.
Distante a discernimos e a amamos sempre,
Embora não saibamos responder.
Agora ao lembrar-me desse poema me sinto um pouco envergonhada com o
romantismo, ou excessivo idealismo que vislumbro em meu caráter, tão
contraditórios com o meu senso de humor que prefiro muito mais, e que tão
lucidamente fora incentivado por meu pai, em minha infância, ao contrário de
minha mãe, que parecia exigir que meninas não o tivessem, e muito menos que
fossem engraçadas, pois lhe parecia uma espécie de despudor.
No apartamento de Jean, começou um período estranho, embora feliz. Quero dizer:
havia alguns mistérios a serem resolvidos, e eles ali se apresentavam mais
claramente. Jean continuava suas pesquisas sobre Adèle, sobre a qual estava
escrevendo um monografia fartamente ilustrada, enquanto procurava algo mais do
que parecia. Mais do que um simples trabalho erudito sobre arte. É claro que
ele procurava a própria Adèle e eu estava ali como sua refém. Como se ele a
visse sempre através de mim, o que me incomodava um pouco. Temia que ele
pirasse e que quisesse voltar no tempo. Isso procedia, pois um dia apareceu
vestido em minha frente com uma indumentária demodée, de escultor do século
XIX, com um espantoso laço no pescoço e uma boina. É verdade que o fez com um
ar de diversão, mas eu percebi algo mais. Trouxe-me também um vestido maravilhoso,
daqueles com armação por baixo, emprestado de uma amiga atriz que tinha feito
com ele a Dama das Camélias. Vesti-o sem reagir e ele caiu-me aos pés, como
Armand, enquanto eu fingia desfalecer de tísica terminal em seus braços. Rimos
muito, o que fez realmente doer-me muito o peito baleado. Ele preocupou-se e
carregou-me para o leito. Aí sim, quase morri, por puro “fisique du role”. Ah!
Quando me lembro disso tudo, doe-me o coração e a nostalgia confunde tempos e
idades em minha alma!...
Afinal, quando comecei a sair de casa, procurei Annie que tinha sumido, mas não
pude encontrá-la. Ceres me disse que Annie tinha ido ao Oriente, mais
especificamente à Jerusalém. Aquilo me soou como uma peregrinação que a pobre
Annie se impusera. Como eu gostaria de abraçá-la novamente, beijá-la e
dizer-lhe o quanto a amava! Sim, que eu a amava tanto quanto a Jean, embora
isso pudesse não ser nenhum consolo para minha pobre amiga.
Corinne visitava-me quase todos os dias. Ela me maternalisava abertamente pois
não tivera filhos, seus mesmo, muito menos uma filha. Ela criara Jean e o seu
irmão sem grandes veleidades de mãe, mais como uma dedicada amiga do que
madrasta. Esse irmão de Jean era um mistério para mim. Parecia que tanto ele
como Corinne evitavam mencioná-lo ou sequer pensar nele. Mas, a razão disso eu
haveria de desvendar em seguida.
Corinne trazia alguns resultados das suas pesquisas sobre Adèle para Jean, mas
eu percebia que ela estava agora mais interessada em mim mesma, em pesquisar na
verdade esta Alma aqui. Ela, no entanto fazia isso com um carinho
extraordinário e parecia adorar uma oportunidade qualquer de abraçar e
acariciar. Eu estava comovida e intrigada ao mesmo tempo, em relação a essa
bela mulher quase idosa, que realizava talvez sua fantasia de mãe, tardiamente,
comigo. Mas não tardei a descobrir que havia também uma nuvem em sua vida.
Corinne encontrara o pai de Jean em circunstâncias parecidas com as nossas. Ela
era atriz, em começo de carreira. Descobri que era talentosa, mas sobretudo
bela. Tão bela que isso até prejudicava-lhe a carreira, colocando-a sob
suspeição, como acontece comigo também, essa é que é a verdade, perdoem-me a
imodéstia. Como se às mulheres bonitas nada mais fosse permitido, muito menos o
talento. A inteligência então, nem se fala. Bem, há muito tempo me reconciliei
com esse fato, e agora consigo administrar razoavelmente essa
"desvantagem". Mas Corinne foi vítima disso, e tomada pela paixão,
renunciou à sua vocação de atriz, o que a manteve virtualmente prisioneira de
um grão-senhor e de seu castelo de espectros materializados: um fabuloso museu
de esculturas prodigiosas, que lhe produziam admiração, respeito, mas também um
certo temor. Ela tentava acompanhar a paixão derivativa do pai de Jean (que se
chamava Ugo) mas não conseguia. Aquelas estátuas logo se apresentariam ao seu
espírito como um cenário terrível das vítimas petrificadas pela Górgona, em seu
silêncio aterrador, em seus gestos interrompidos, no espantoso oposto do
animado mundo do seu teatro perdido.
Corinne não se tornou uma mulher triste, mas truncada, neutra. Só se animava no
recesso da intimidade dos braços do seu amado, quando este esquecia um pouco o
seu fabuloso elenco mudo, dessa peça incompreensível, de todos os mitos
petrificados juntos como o Museu do “Inconsciente Coletivo” da Humanidade, que
ele mantinha ciumentamente em sua casa. Deuses, deusas e alguns mortais
escolhidos ocupavam lugares determinados num tabuleiro invisível aos não
iniciados, no espaço mental de sua casa, como um jogador solitário que joga
sempre consigo mesmo, eternamente.
Corinne poderia ser destruída nesse tabuleiro, onde não se encaixaria, não
fosse ela uma espécie de bela sombra necessária que velava para que o insólito
torneio não tivesse fim.
Quando Ugo ficou afinal doente, ela pode afirmar-se com uma autoridade
desconhecida de todos até então, quase anulada que estivera durante tanto
tempo. Jean e seu irmão não lhe tinham sequer dado a importância que poderiam
lhe dar, órfãos que eram, na verdade, e tão necessitados de mãe. Procuravam a
atenção do pai, cada vez mais distante em seu sonho incompreensível, e sem
perceber, avaro em seu carinho. Austero demais no trato pessoal, exigia dos
meninos somente a cultura e o dever. Não tardei a descobrir que o irmão de Jean
fora vítima desse processo. O rapaz se suicidara aos quinze anos. Foi
encontrado enforcado no sótão da casa com um bilhete:
DANE-SE MICHELÂNGELO!
Parece que esse bilhete de suicida chocara o pai de Jean, mais do que tudo, e
tratou de por uma imensa pedra de Carrara em cima do episódio. Não sei como
Jean sobreviveu a isso tudo. Sabendo disso, agora, eu queria derramar o meu
amor, o meu carinho e a minha ternura sobre este sobrevivente que me parecia
heróico, pelo simples fato de ainda estar ali.
Eu podia imaginar a dor do pequeno Jean diante daquele enforcado, já que fora
ele o primeiro que o encontrara. Eu ainda enxergava aquele susto, aquela
perplexidade, nos seus olhos azuis quando me olhava nos seus momentos mais
frágeis, mais íntimos. Eu então lhe beijava as pálpebras para fechá-las como às
cortinas de uma peça encerrada, que ninguém aplaudiria.
Corinne então revelou-se a partir dali. Tomou as rédeas de uma casa que
ameaçava desmoronar-se, não fisicamente, já que tudo era tão firme como o
bronze e o mármore e as paredes monumentais, mas no seu sentido interno,
íntimo, que parecia perder o seu significado quando o caixão foi velado, à
antiga, entre quatro tocheiros de prata, no salão cujas estátuas foram
temporariamente afastadas. Corinne segurava a mão de Jean que parecia ter virado
novamente um menininho diante de algo que não compreendia. Certamente era mais
fácil entender a imobilidade daquelas estátuas do que a do rosto branco de seu
irmão, de olhos cerrados naquele caixão rodeado de flores mórbidas. Jean nunca
mais suportou as flores e a única rosa que me deu foi aquela que pôs no copo da
nossa mesa do Café naquele nosso segundo encontro. Como tudo aquilo agora
parecia distante!... Como eu estava envolvida agora com o universo do meu amor,
que eu descortinava dia por dia, compenetrada do imenso mistério e grandeza da
vida humana, quanto mais é vista de perto, de dentro, e do fundo de sua
profundidade insondável como um belo e triste lago de águas negras...
Jean me amava cada vez mais e sua idolatria poderia se tornar perigosa para ele
mesmo. Eu temia a sua tendência delirante, a que eu mesma não estava imune. Eu
me conhecia, e sabia como eu era influenciável pela emoção, se não pela razão.
Eu sempre pusera poucas barreiras ao arroubo, ao entusiasmo e à profunda
comoção na minha vida, pois eu não me permitiria poupar-me, numa trajetória que
eu queria plena, rica, se possível sublime. Essa era a verdade do meu coração
romântico, que só me permito confessar aqui, sobre estas páginas.
Um dia Jean, vendo-me recuperada, e bem, chegou da rua com entradas para o
Opéra. Iríamos ver Lakmé, de Léo Delibes. Bati palmas de alegria. Era uma das
minhas óperas favoritas e só em pensar em ouvir ao vivo “ Où va la jeune
hindoue ”, a “Ária das Campainhas”, meus olhos se encheram de lágrimas de emoção.
Vestimo-nos com apuro, e uma hora depois estávamos naquele saguão da Pythia,
que desta vez evitei olhar muito. Queria preparar-me para fruir a música, e não
aquele grito mudo, que agora me causava uma certa repulsa.
Instalados no camarote, ouvindo a maravilhosa abertura daquela ópera, em que já
se insinuava o tema da ária famosa, pus-me a caminhar com a jovem hindu, “fille
des parias” com a qual estranhamente me identificava. Que contradições eu tinha
na minha alma, que ia da duquesa Adèle à aquela pequena pária da Índia, que
batia uma pequenina campainha para afugentar o tigre, em sua travessia
solitária da floresta. Eu via ali a alegoria da minha própria vida, pequena e
frágil que, na verdade, eu era, soando uma campainha que era a minha própria
arte tão modesta diante de um mundo tão vasto e ameaçador como aquela floresta.
Depois de momentos sublimes, em que pus-me a derramar-me em lágrimas de maneira
tão abundante que preocupou Jean, a ponto de querer retirar-se comigo,
acreditando que aquilo estava me fazendo mal, encontramo-nos ao findar o
espetáculo, com Corinne no salão, que belíssima com seus cabelos brancos, que
eu adorava, e que tinham tal luminosidade que a destacavam naquele Foyer, nos
abraçou, alegre, e puxou-me para um canto confidenciando-me:
—Alma, querida, preciso de você. Não me pergunte nada por enquanto. Venha à
minha casa amanhã, mas não diga nada a Jean, eu lhe peço. É absolutamente
imprescindível que você venha só. Tente despistar o seu marido, posso chamá-lo
assim? Vocês formam um casal tão unido, que acredito poder considerá-los marido
e mulher. No entanto, peço-lhe esta pequena traição. Sim? Você virá querida?
–Claro, Corinne – disse eu–Estarei lá amanhã, cedo, se você quiser. Estou à sua
disposição, você pode sempre contar comigo, você sabe.
Após aquela noite, em que fui dormir feliz e comovida, mas ligeiramente
perturbada pela curiosidade, acordei cedo, e preparei-me para rever o castelo
da Medusa, com seu fabuloso tesouro de deuses petrificados.
A porta me foi aberta pelo seu novo empregado, uma espécie de mordomo negro,
africano legítimo, que ela descobrira e que seria capaz de morrer por ela.
Conduziu-me escada acima até o andar superior, a que eu nunca tinha subido, e
que mais parecia o das dependências íntimas de um palácio. Bateu na porta de um
quarto no fim de um corredor e em seguida empurrou a porta e retirou-se sem
olhar para dentro. Vi Corinne num portentoso leito, sentada com a bandeja de
pernas, do “pétit déjeuner” em sua frente. Depositou a xícara e com um sorriso
receptivo, disse:
–Alma, minha querida. Que bom que você veio! Eu sabia que podia contar com
você. Você está bem ? Sente-se aqui ao meu lado, querida. Quero mostrar-lhe uma
coisa.
Tirou de debaixo do grande travesseiro, atrás de si, uma caixa de madeira
marchetada, e abrindo-a retirou uma carta, que pelo papel, à primeira vista me
pareceu antiga. Entregou-ma, dobrada que estava, abri-a e li:
" Minha querida Corinne
Quando você abrir esta carta, já terei ido, levando comigo as lembranças dos
momentos felizes do nosso encontro nesta vida. Você foi sempre a minha amada
ideal. Sei que você sacrificou tanto pela nossa relação: uma parte importante
da sua vida, da sua alma mesmo. Mas eu sempre soube apreciar isso, e
reconhecê-lo em meu íntimo, apesar do meu enorme egoísmo, que também reconheço.
Todavia eu não podia abrir mão, jamais, da sua dedicação, de sua abnegação a
mim e aos meus filhos, que eu não saberia carregar depois da morte de Adèle.
Sou mais fraco do que pareço e você sabe disso muito bem. Agora quero
revelar-lhe um segredo: Minha falecida Adèle, era bisneta da grande Adèle
"Marcello", minha escultora favorita (que tivera uma filha natural, e
portanto uma descendência que descobri nas minhas pesquisas), e confesso que
somente por isso casei-me com ela, o que pode ter sido um erro fatal, pois não
pude fazê-la feliz como ela merecia. Ela matou-se, essa é a verdade que nunca
lhe contei porque eu tinha imensa vergonha de mim mesmo por esse fato, como
pela morte nas mesmas circunstâncias do irmão de Jean, o infeliz pequeno
Marcello, vítima como a mãe de uma carência que eu não pude suprir em ambos.
Considero você e Jean, sobreviventes, talvez, do meu egoísmo, da minha enorme
pobreza, que agora realizo. Não soube manifestar meu amor por vocês todos, dominado
que estava por meus espectros, sobretudo pelo espectro da primeira Adèle, que
foi a obsessão da minha vida. Espero que você e Jean escapem dessa herança
maldita e que as primeiras peças de que se desfaçam após a minha morte sejam os
Marcellos da minha coleção. Eles são os fantasmas cristalizados de uma obsessão
que me tomou desde que eu era criança, quando fui levado ao Opéra por meus pais
para assistir uma ópera francesa se não me engano a Lakmé de Delibes.
No Grand Foyer, defrontei-me pela primeira vez com a Pythia que obsedou a minha
vida em torno de uma Musa que quase consegui captar e que você sem saber também
corroborou ao interpretá-la numa peça, sem se dar conta, e em cujo papel lhe
conheci.
Como você sabe, meus filhos herdaram os nomes ligados àquela vida: Marcello e
Jean-Baptiste, o amigo,que na verdade nunca foi um amante a não ser espiritual,
talvez. Adèle-Marcello foi apaixonada por Lizst, desde que ela o conheceu e fez
o seu busto que tenho no meu escritório, um dos exemplares de uma edição
raríssima, três peças somente, uma está no Museu de Fribourg, a terceira nunca
pude localizar. Também nunca pude suportar a música de Lizst, mas eu a ouvia
para compreender Adèle ou para tentar captá-la, de algum modo. Sei que você
sofria calada todos estes anos por estas minhas estranhas paixões, e que você
suportou mais do que a maioria das mulheres suportaria. Quero que me perdoe,
depois da minha morte, se puder, pois estou convencido de que as obsessões são
duradouras, atávicas e herdáveis... como os tesouros e as maldições.
Perdoe-me e acredite no meu amor, apesar de tudo
Seu
Ugo"
Terminei a leitura e permaneci de olhos parados, algum tempo. A carta era uma
grande contribuição ao entendimento da vida e da psique de Corinne e de Jean,
embora acrescentasse pouco ao conhecimento de Adèle. Não cheguei a ter pena do
pobre Ugo, pois sua carta não chegou a me comover, denunciando seu fundo de
frieza ou mesmo de impenitência. Queria eu que o pobre também tivesse se
suicidado, para poder perdoá-lo, e chorar por ele? Não sei... Mas eu podia
chorar por Jean, por Corinne e sobretudo por aquele pobre menino Marcello,
vítima maior de tudo isso... Adèle, dentro de mim, eu sentia agora como uma
ameaça. Devia eu recalcá-la, a ela que tantas vítimas fizera no passado, em sua
vida, até os nossos dias?
Corinne segurou-me as mãos, beijou-as e disse:
–“Minha pequena Alma, minha querida, agora vou mostrar-lhe outra coisa. Só
espero que você nada fale ao Jean, do que estou lhe mostrando. Nem da carta nem
disso ”– e dizendo isso apontou uma estante que cobria toda a parede em frente
à cama, que se abriu, girando a um toque seu, que não percebi, descortinando um
quarto escuro, uma alcova, decorada como um cenário místico, vazio, teatral,
com um nicho onde estava, terrível... a Pythia!.. em seu tamanho natural,
sentada na trípode, com seu grito mudo, a garra no ar. Aquilo me causou tal
espanto e emoção, que por pouco não desmaiei, sob o seu impacto. Ela parecia
iluminada por um foco escondido que a fazia flutuar. Não obstante sua leveza,
continuava ameaçadora como uma Fúria, a Górgona, ou uma Harpia. Lembrei-me da
minha experiência passada, na fazenda de Antônio e Chiara, e um arrepio
tomou-me o corpo, tanto mais que aquela obra tinha uma ressonância interna, em
mim, que me chocava e me repugnava. Quis fugir daquela visão, e do quarto de
Corinne, mas esta segurou-me os ombros, e abraçou-me dizendo:
–Enfrente-a, Alma, enfrente-a em você
mesma! Seu coração é tão belo e poderoso que pode nos exorcizar a todos, a
começar por você mesma. Adèle, aquela feiticeira, não vencerá, no final. Sua
beleza destrutiva precisava ser purificada e coube a você fazer isso. Eu
percebi isso desde a primeira vez que a vi, aqui nesta casa, com Jean, quando
vocês vieram consultar o Bénézit. Considero seu encontro com Jean e comigo,
providencial. Só você, herdeira da alma de Adèle, redimida afinal, poderia nos
livrar do seu sortilégio antigo, maldito. Sua alma purificou-se, evoluiu, pode
se ver, em você, meu anjo. Lillith ficou para trás, perdeu suas garras com o
século que passou e agora vemos afinal a perfeição de sua alma de artista,
diante de nós, nesta Alma aqui, que todos amamos!
Caí em prantos, numa tremenda emoção. Corinne me abraçava como a mãe que
reencontra uma filha perdida e essa impressão haveria de voltar mais tarde em
meu espírito.
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Jean trabalhava todos os dias no seu consultório e trazia dinheiro para casa, e
também presentinhos, mimos. Eu me sentia a sua mulher, domesticada e contente.
Cuidava do lar e só faltava ajeitar-lhe o chinelo e o cachimbo (ainda bem que
ele não fumava mais).
Estava sempre pronta para o amor, ou para o sexo mesmo, melhor dizendo, e ele
me enchia do seu esperma precioso, no mínimo duas vezes por dia. Aquilo fazia
bem para a pele, eu me lambuzava bastante com ele e me sentia plena e feliz.
Porquê então não estava satisfeita? Ah! Adèle em mim, a minha alma de artista,
terrível, me espreitava do fundo do seu nicho interior. Sua garra no ar, não
permitia que o véu do santuário se fechasse totalmente sobre ela. Ai, estas
metáforas me matam, mas era assim mesmo que eu sentia.
Preparei-me então, aos poucos, para dar o basta, romper com tudo e dizer a
Jean:
–Meu amor, preciso voltar ao meu ateliê. Preciso ser livre, como outrora, para
criar. Ceres pressiona-me, estou aqui há seis meses, e ela me quer de volta ao
reino dos vivos, onde se sofre, eu sei, onde não estarei protegida, senão por
ela mesma, mas onde poderei correr livre e colher as flores do meu caminho (eu
insistia nas metáforas...)
Jean olhou-me perplexo e consternado. Abraçou-me e com lágrimas nos olhos e
disse, quase gritando:
–Não me deixe, Alma, não me deixe! Eu não vou suportar, eu morrerei se você me
deixar de novo. Não posso mais viver sem você. Nunca pude... por favor, Alma,
por favor!
Olhei-o e vi nele o menininho que Corinne segurava pela mão no velório de seu
irmão. Meu coração apertou-se... e eu cedi. Permaneci silenciosa, de cabeça
baixa e nada mais falei. O meu coração estava dividido entre ele e a minha
arte. Entre Jean e mim mesma.
Mas então me lembrei do Tao, e do propósito de não oferecer resistência à
corrente, ao momento. Deixar fluir. Isso me apaziguou. Meu coração
descontraiu-se, eu sorri, e envolvendo-o com meus braços, puxei-o sobre mim, ao
leito, para ser mais uma vez inundada pelo seu branco amor.
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Andando pelo “Marché-aux-pouces” , agora que eu continuava a fazer a madame
ociosa, encontro uma banquinha onde se viam gravuras, pequenos objetos e anéis.
Percebo o retrato em litografia de uma mulher linda, do século XIX, com o dedo
apoiado no rosto, em atitude típica de intelectual ou artista, como usavam, ao
posar. Num pequeno pedestal ao seu lado, qual não é a minha surpresa, diviso o
busto de Lizst! Reparei melhor nos cabelos louros e no rosto branco, bem
destacados, habilmente, na gravura em preto e branco. Não tive dúvidas: era
Adèle. Aquilo me causou imediata emoção. Aproximei-me e examinei a gravura, na
sua moldura antiga, não encontrei nenhuma indicação, nenhum nome, nem do
gravador, nem do modelo. Mas não havia dúvida. Perguntei o preço, e a moça
comerciante, aproximou-se de mim e, surpreendentemente, como uma cigana,
segurou a minha mão esquerda, e abriu-a como para ler a minha palma. Colocou
nela um anel, me pareceu, e fechou-a, segurando-a para que eu não o olhasse
agora, e deu-me o preço da gravura. Fiquei tremendamente intrigada. Peguei a
gravura, e olhando a moça nos olhos, por um momento, afastei-me e fui para casa
carregando o quadro sem mais olhar para ele. Quando estava perto do apartamento
de Jean, ou, melhor dizendo, de casa, lembrei-me de que, surpresa, eu tinha
esquecido de pagar o quadrinho à cigana. Pensei em voltar, mas achei que podia
deixar para o dia seguinte. Eu tinha de preparar o almoço para o meu Jean, que
deixava todo dia o consultório para almoçar comigo em casa. No ap, em meu
quarto, pus o quadrinho sobre a cama, e lembrei-me de abrir a mão esquerda,
afinal, que doía em torno do objeto. Era um anel, estranho, belo, de prata,
antigo, com uma pedra que não identifiquei. Olhei o seu aro, internamente e
estremeci: “Para Adèle, Carpeaux”. Quase caí para trás
A cigana me dera aquilo! O que ela vira em mim? Ela teria percebido Adèle?
Estaria ela devolvendo-me o que era meu, conscientemente? Aquilo era demais.
Amanhã eu iria ter com ela, sondá-la, resolver aquele enigma. Eu continuava a
ser assombrada por Adèle, mas não podia, na verdade me revoltar. Afinal, eu
encontrara Jean, encontrara a felicidade conjugal, e queria estar sempre
repleta do amor branco do meu marido... Eu fazia auto-ironia. Era incorrigível.
Mas isso é que me salvava. Isso e o temor permanente de me mediocrizar, tinham
me impulsionado toda a vida, como artista. E eu não podia mais continuar
abdicando da minha incoercível vocação. Adèle não permitiria. Percebi, então,
subitamente, o sentido de tudo isso! Adèle era minha cúmplice, minha aliada! Eu
tinha de olhá-la por este ângulo, esta é a verdade. A artista maravilhosa que
havia dentro de mim, era ela: Adèle, née D’Affry, duquesa Castiglione-Colonna.
Apoiei o quadrinho contra um castiçal na minha mesinha de cabeceira. Jean
ficaria impressionado. O que ele diria? O anel, por alguma secreta razão, eu
esconderia dele. Amanhã eu procuraria a cigana.
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Jean não se cansava de olhar a gravura. De perto, de longe. Chegou a pegar uma
lente de aumento, pois cismou que na pupila de Adèle, ele poderia ver refletido
o rosto de Carpeaux. Como não conseguiu, foi comprar um conta-fio, lente de
ourives ou gravador, pois dizia que era uma questão de grau de ampliação.
Lembrei-me do filme Blow-Up, de Antonioni, e fiquei também curiosa com essa
possibilidade. Mas, claro, aquilo não era uma foto, e com o aumento só se
conseguiu ver a textura arenosa do “grão” da pedra litográfica.
Enquanto isso, eu escondia o anel que Carpeaux dera a Adèle, pois não queria
consagrar com aquele anel a nossa aliança, essa era a verdade. Eu pensava cada
vez mais em escapar, malgrado meu amor por Jean. Até mesmo para preservar o meu
amor por ele... eu precisava partir. Só temia a dor, a dor. A dele e a minha...
nessa separação inexorável. Não, isso não seria uma rejeição, um abandono
destrutivo daquela Bianca Capello a um seu amante. Eu queria preservar o nosso
amor, e sabia que isso nos causaria uma dor... quase insuportável. Comecei a
fazer as malas secretamente... e chorava enquanto o fazia.
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Voltei àquela feira, mas não consegui encontrar a banquinha da cigana. Ninguém
sabia dela. Com isso eu não contava... mas reconheço que era de se esperar. Tais
ciganas só aparecem para transmitir algo, ou fazer um vaticínio fatídico. Pelo
menos nos filmes ou nos romances. Como sou muito impressionável, fiquei mais
abalada e confusa do que nunca.
Retornando à casa, e estando sozinha, peguei a lente conta-fio, para examinar o
anel. Queria descobrir mais algum indício, se possível. Observei a inscrição,
mas esta nada mais continha, além dos nomes. Mas... a pedra! Comecei a
examiná-la, e qual não foi a minha surpresa quando percebi que dentro do
cristal estava ... a cabeça da Górgona! Eu a via claramente sob a lente. Era
invisível a olho nu, talvez um pontinho ínfimo. Mas ampliado... era
terrificante! Distinguia-se claramente até mesmo as serpentes nos cabelos. E
seus olhos eram terríveis! Temi, por minha vez, transformar-me em pedra. Que
queria dizer aquilo? Como pudera Carpeaux perceber aquilo? Ou fora
involuntário? Certamente ele conhecera esta Górgona, a Medusa, obsessão de
Adèle, que a esculpira em tamanho natural, e a proclamara em si mesma. Eu
estava cheia de medo. O que mais temo nesta vida é a possibilidade do Mal...
dentro de mim mesma. É o único que realmente me assusta. Tudo se passa dentro,
estou certa, deste cristal misterioso que é a nossa alma. Tudo o mais é Maya,
ilusão... Sempre acreditei nisso. O próprio mundo é um fenômeno subjetivo.
Depende totalmente da nossa visão. Por isso pode-se ser feliz... ou infeliz,
neste mesmo mundo. Caleidoscópio. Eterno jogo de inversões.
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Terminei de fazer a mala, com as últimas roupas por cima, úmidas das minhas
lágrimas. Coloquei-a junto à porta e permaneci de pé, imóvel esperando por ele.
Jean entrou e vendo-me ali, e àquela mala, ficou lívido imediatamente.
Estendeu a mão no ar, e ela tremia. Ele sufocava. Afinal murmurou:
—Alma, não... não. Não faça isso. Eu lhe imploro, Alma, não!
Agarrou a mala e correu para dentro. Abriu-a e despejou as roupas sobre a cama.
Gritava:
—Eu não deixarei! Você não pode me deixar. Você me mata! Você me mata!
Eu tremia, embargada. Eu não imaginara que seria assim... tão penoso. Abracei-o
forte, enquanto esse homem maduro chorava como uma criança. Disse-lhe:
—Jean, Jean, ouça-me. Eu não deixei de amá-lo. Eu não deixarei nunca de amá-lo.
É necessário, Jean, que eu me vá. É necessário... Você deve saber. Você deve
compreender.
Jean soluçava, agarrado a mim. De repente, afastou-se, permaneceu em pé,
estático, paralisado, imóvel, em estado de choque.
Recuei lentamente, olhando-o, olhando-o sempre, até chegar à porta, e de
repente voltei-me e saí. Sem a mala, sem nada.
Estava decidida a não mais retornar.
FIM
01/06/2006
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