sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Ariadne em Náxos (de Alma Welt)


Estatueta de faiança colorida, de 1.600 A.C., no apogeu da cultura miceno-cretence, descoberta pelo arqueólogo inglês Arthur Evans nas escavações por ele realizadas no palácio de Mino em Cnossos, Creta. Ele a denominou "a sacerdotisa das serpentes", porque assim a supôs. De qualquer forma, essa graciosa estatueta que tem a figura de um gato sobre a cabeça, revela a curiosa moda das mulheres cretenses naquele período, com vestidos longos de babados e os seios à mostra sobre um apertado corpete.

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ARIADNE EM NÁXOS

( 1° capítulo da novela ARIADNE em três capítulos, pertencente à Trilogia Mítica de Alma Welt)



"Eu andava ali, nas sendas do obscuro reino, cujo rei nunca foi visto, e do qual, seus súditos, que eu não via, nunca tiveram notícias, imersos que estavam em trevas muito antigas.”



Um dia, subitamente, desapareci. Não pude encontrar-me em parte alguma. Andava pelo meu estúdio, agoniada, tentando dar-me conta do meu paradeiro. É verdade que os primeiros sinais do meu desaparecimento já se tinham iniciado há alguns dias, mas eu não quisera deter-me a pensar naqueles sintomas. Uma vaga nostalgia, alternada a uma ansiedade súbita: um não sentir-me bem dentro da minha pele; uma vontade de retornar não sei para onde, reprimida como indesejável. Voltar ao sul? Não, não se tratava disso. Se fosse assim, teria sido fácil lidar com isso.
Eu estava ali, perdida de mim, em meu próprio apartamento. Se eu ainda estivesse no labirinto, saberia o que fazer: tenho dentro de mim um comprido fio que eu percorreria enrolando-o novamente. Mas não, eu não estava em parte alguma. Tinha mesmo desaparecido.
Após três dias, ouvi vozes no corredor e em frente à porta. Mexiam na fechadura e logo a abriram. Vi entrarem o zelador, seu Ermírio, a síndica, dona Aurélia e sua filha Regina. Seu Ermírio dizia:
–Ela não está, dona Aurélia, estou lhe dizendo. Tenho observado o apartamento, quando venho fechar as janelas dos corredores de serviço, por causa das chuvas. Nenhum movimento e nenhuma luz acesa, de noite. Nada de som de televisão ou rádio, ou qualquer outro.
–Mas, Ermírio–disse dona Aurélia–Você não a viu sair de malas? Estamos no fim do ano, algumas pessoas já pararam de trabalhar e começam a sair de férias... Você tem certeza que ela não passou pela portaria? E os outros funcionários? Ela poderia ter saído num momento de troca de porteiro. Não houve um momento sem ninguém na portaria? Alguns minutos que fossem?
–Não, dona Aurélia. E sua filha também não viu ela, não é mesmo, Regina?
–É, mamãe. Eu acho muito estranho. Olhe a cama dela, está desfeita. Ela não parece pessoa que iria viajar deixando a cama assim. Tudo o mais é tão ordeiro por aqui, apesar de ser um estúdio. Somente as telas, no chão, o que me parece normal. Olhe, mamãe, como é belo aqui. E que quadros! Como ela pinta! É lindo demais. E quantos livros!
– Mas Regina, não é hora de reparar nisso. Há algum mistério aqui.
Estou cada vez mais preocupada. Essa moça é muito independente. Ah! se fosse minha filha... Eu a traria, aqui, rente, no cabresto.
– Como você faz comigo, não é? Estou farta, fique a senhora sabendo. Já não sou criança. Tenho 38 anos e a senhora não larga do meu pé.
Ah! Como eu queria ser como a Alma! Ela é tão linda! É verdade que ela me abala um pouco com aquela beleza toda e aquele olhar tão misterioso e meigo. Quando acontece de a gente se encontrar no elevador, subindo ou descendo, meus cachorrinhos ficam mais silenciosos, quietos. Não latem e não parecem amedrontados. Como eu, eles não desgrudam o olhar dos olhos dela. Eu fico também paralisada, inibida, não sei o que falar. Mas não é medo, é uma fascinação. Aquele olhar tão profundo, e tão doce... Tenho vontade de chorar, quando me vejo assim diante dela, a sós, no elevador.
Eu ouvia aquilo, comovida. Eu, na verdade, nunca dera muita atenção à Regina, e apenas a olhava nos olhos, no elevador, tanto quanto aos seus lulus brancos, sempre tão limpinhos, como flocos de algodão, que, muito agitados, paravam mesmo, quando me viam.
–Regina, eu sei o que você quer dizer. Eu vejo pouco essa moça. Ela nunca vai à reunião de condomínio, mas eu adquiri suas gravuras para o prédio, assim que as vi. Ela deixou de pagar o condomínio por um ano, em troca delas. Aquelas doze gravuras lindas foram descontadas uma por mês. Penduramos elas imediatamente, e durante a reunião os outros condôminos nem hesitaram em aprovar unanimemente. Elas valorizaram o aspecto das nossas portarias, nos dois blocos. Gosto muito dela também. Sempre apoia de antemão minhas iniciativas, embora não compareça às reuniões. Por isso, e por tudo, me preocupo com ela. Ela não parece ter pai, nem mãe, nem é visitada por familiares. Percebe-se que, de tempos em tempos, ela vive um temporada com alguém. Uma amiga ou outra, sempre muito belas, também. Houve um namorado, há alguns anos, com quem ela saia de mãos dadas, muito alegre. Ela parecia muito feliz, naquele tempo.
–Mas, mamãe, ela parece sempre feliz. É isso que me intriga. Sempre sorri para a gente, embora não fale, quase. Ela é reservada, de um jeito diferente, porque o seu sorriso é muito belo e faz bem à gente, como se ela estivesse se dando, sei lá...
–Pois é, Regina, por isso estou mais preocupada ainda. Talvez devamos chamar a polícia. Eles poderiam fazer uma investigação, achar uma pista, que sei eu?... Essa moça pode estar em apuros. Vamos, Regina, procure um bilhete, uma carta, uma mensagem qualquer por aí. Olhe debaixo da cama, também...
Eu me sentia curiosa e fiquei observando o movimento dos três. Seu Ermírio não ousava tocar em nada, mas olhava perplexo para todos os lados, parecendo nunca ter visto nada como aquilo tudo. Quero dizer, o aspecto do meu estúdio, que certamente não pareceria uma casa, um lar, aos seus olhos. E a minha cozinha, então, que não era separada do salão e nem tinha um pingüim em cima da geladeira! Sorri com esse pensamento, mas logo pus-me aflita e aproveitei para sair com eles quando resolveram ir embora para tomar alguma providência. Fecharam a porta por fora com a chave mestra com a qual a tinham aberto e eu dei-me conta de que eu não pegara as minhas chaves. Resolvi ir procurar Aline. Afinal, eu tinha um bom pretexto: ela ainda tinha as minhas chaves. Há meses eu não a via, por orgulho, desde que ela me deixara. Mas agora eu podia procurá-la, pois afinal, eu estava desaparecida, e precisava das minhas chaves. Ela me receberia de braços abertos, eu imaginava. Nunca rompemos formalmente. Ela me abandonou com um grande beijo e um sorriso, se bem me lembro. Nunca imaginei que ela iria mesmo me deixar, embora ela viesse falando nisso, como hipótese. Mas, não quero lembrar dos momentos tão dolorosos que se seguiram. Agora é o momento de procurá-la, eu sei.
Cheguei ao prédio da Aline, passei pela portaria e não me perguntaram nada. Tomei o elevador e subindo até o seu andar, toquei-lhe a campainha e ela me abriu a porta com um ar perplexo, os olhos muito abertos.
– Alma, você por aqui? Você está desaparecida, onde você está? Ah! minha querida, dê-me um abraço, assim, forte, e um beijo. Entre, entre, não repare a bagunça. O Pedro é muito bagunceiro e eu, você sabe, não menos, não é? Não sei como você me agüentava. Mas sente-se aí no chão, Alma, nessas almofadas, vou pegar um vinho para nós. Precisamos brindar a esse nosso reencontro.
Aline me conhecia, sabia quando eu desaparecia, e não se importava demais com isso, aparentemente. Ela estava ali, diante de mim, e meus olhos se enchiam, de lágrimas. Eu ainda a amava... e não mais sabia o que fazer com esse fato. Abraçá-la? Beijá-la? Não, não se tratava mais disso. Talvez eu quisesse compartilhar com ela o meu desaparecimento, por narcisismo. Eu que fui por tanto tempo o seu espelho, agora parecia um espelho vazio, ela não me veria sequer como um reflexo. Uma dor súbita apertou-me o peito. Tomei o vinho com ela, como duas boas amigas, mas ela estava levemente constrangida. Percebi que o meu desaparecimento já não lhe dizia respeito. Eu desaparecera tarde demais.
Saí dali, entristecida, sem despedir-me e sem ser percebida. Resolvi procurar Vânia. Ela saberia, talvez, o que fazer com o meu desaparecimento. Talvez trazer-me de volta, sei lá.
Cheguei cansada de tanto andar. Subi os inúmeros degraus até a porta de sua casa. Toquei a campainha e a sua empregada abriu-me o portão. Ela me esperava na porta e abraçou-me, comovida. Choramos muito, abraçadas, e ela dizia:
– Alma, Alma, como você pôde desaparecer assim? Que lhe fizemos, Alma? Você não nos avisou nada. A nenhum dos seus amigos. Estamos sentindo a sua falta, sua ingrata! Quando você vai reaparecer?
Abracei-a e beijei-a. Quis levá-la até o seu quarto, mas ela, pela primeira vez, hesitou. Disse:
–Alma, nada podemos fazer, enquanto você estiver assim...sumida .Eu não me sentiria bem, nem você, acredito. Tenho medo de você evaporar-se diante dos meus olhos, Eu não agüentaria. Já sofri demais por você, também, Alma, você sabe.
Depois de ouvir isso, eu quis sair logo dali. Comecei a chorar, lembrando do nosso amor, e das nossas ardentes noites de paixão, quando parecíamos entrar, literalmente uma dentro da outra, embora só pudéssemos introduzir uns dedinhos, essa é que é a verdade.
Ai, quanta dor, quanta nostalgia do amor que ainda carregávamos dentro de nós, dos nossos seios, vaginas e úteros. Dos nossos lábios que viviam grudados, outrora, a não muito tempo atrás.
Deixei-a também, e de cabeça baixa, desci aqueles degraus, como um espectro de mim mesma. Eu já não me sentia ali, já não me sentia em parte alguma. Era melhor procurar o meu analista. O dr. Platus saberá, talvez, lidar com isso. Talvez possa me aconselhar... e fazer-me reaparecer. Afinal, é para isso que ele é pago, não é mesmo? Afinal, um psicólogo é um investigador, um detetive da alma, terá que dar-me notícia do meu paradeiro.
Atravesso o meu bairro todo, então canso e tomo um táxi, desço em frente ao consultório do dr. Platus. Não marquei hora com ele. Nem sequer telefonei. Mas algo me diz que ele me receberá, achará um horário para mim, ou uns minutos entre consultas. Afinal, trata-se de uma emergência...
Sua secretária, surpresa, pergunta-me se eu falei diretamente com o doutor, pois não lhe consta que eu tenha horário hoje. Consulta sua agenda, e reitera:
–Alma, não é seu dia hoje. Você tem hora amanhã, e mais cedo, você sabe. Você tem algum problema, querida? Você está meio desaparecida, agora vem assim, fora do seu dia e horário. Mas espere, o doutor já está terminando uma consulta. Quem sabe...
O doutor Platus abriu a porta, despedindo-se de uma moça. Olhou-me com surpresa, e à dona Aglaia. A secretária quis justificar-se, mas ele fez um sinal, e com um sorriso receptivo, pegou-me pela mão e introduziu-me na sua sala.
Sentou-se na sua poltrona com um gesto para que eu me sentasse e disse:
–Alma, Alma. Algo me dizia que você desaparecera. Percebi os primeiros sinais, na nossa última sessão. Tentei preveni-la, lembra-se?. Mas você não levou em consideração, e não havia nada que eu pudesse fazer para deter o processo. Você sabe... há um certo determinismo quanto a isso. Sei detectar os primeiros sintomas. Aquele seu ar vago, aqueles suspiros, o olhar distante e distraído. Mas, não somente isso, é claro, isso acontece freqüentemente com algumas pessoas sonhadoras. Mas, o conteúdo de suas palavras, Alma, é que me alertou, na nossa última sessão. Você insistia que o seu lugar não era aqui, e que a sua alma estava deslocada. Que ansiava recolher-se a uma profundidade que você não definia bem. Você me preocupou, Alma. Diga-me agora o que você está sentindo. Preciso entender para poder ajudá-la. Conte-me tudo. Onde você está?
Dei um soluço e explodi em lágrimas. Eu não sabia exatamente porquê. Não chorava por mim. Eu estava ausente. Chorava pelo amor das pessoas. Pelo amor que eu percebia neste médico, neste analista, neste homem bom, que nitidamente me amava, sem poder jamais declarar-se. Resolvi, naquele momento, voltar à noite ao seu consultório, escondida, para ler a minha ficha, isto é, as suas anotações ao meu respeito. Sei que isso é muito irregular, nada ético, mas não me importo: é o único meio de saber o que se passa comigo, pois suspeito que o doutor Platus sabe muito mais do que quer me dizer. Além disso ele parece um pouco inibido de abrir-se comigo, temendo uma inversão de papéis, talvez.
Despedi-me do meu analista, que se desculpava por não ter uma hora inteira para mim (50 minutos), afinal não era mesmo o meu horário e dia, mas que desejava que eu suportasse tudo com coragem, e não fizesse nenhuma besteira durante a minha ausência. Amanhã nos veríamos.
Voltei para casa, passei pela portaria sem ser notada, e diante da minha porta lembrei-me de que eu não tinha a chave, que ficara dentro, a porta trancada pela dona Aurélia, por fora. Mas resolvi entrar assim mesmo, instintivamente confiante na sutileza da minha matéria, naquele estado de ausência em que me encontrava. Me vi imediatamente do lado de dentro, o que aumentou a minha confiança na empreitada noturna a que me dispusera, penetrando no consultório do doutor Platus para fuçar o seu arquivo.
Esperei a noite chegar, com aquela paciência dos ausentes, que parecem não ter pressa para nada, muito menos para retornar. Desconfio que havia uma mudança do sentido do tempo. Eu poderia facilmente projetar-me no amanhã, que seria a mesma coisa, pois, desaparecida, eu não poderia realmente agir sobre o mundo, afirmar minha presença.
Lá pelo que seriam 10 horas da noite, encaminhei-me para o consultório do dr Platus. Logo vi-me na sua sala de consultas, às escuras. Acendi a luz, sem receio, já que não poderia ser flagrada por nenhum eventual vigia noturno, que no máximo encontraria a luz acesa, as pastas remexidas, e atribuiria a um misterioso ladrão.
Encontrei logo a minha pasta e sofregamente comecei a ler:
“ Alma Welt
Minha paciente desde ....de Setembro de 19... Gaúcha de..... ,filha de pai médico e fazendeiro, órfã de mãe desde a sua idade de 13 anos, e de pai há quatro anos.
“ A paciente adentrou o meu consultório, em estado de melancolia, como ela mesma definiu. Preferi não precipitar-me num diagnóstico de depressão, ou de PMD, já que seus sintomas secundários são atípicos. A moça sorri, embora tristemente, e sua beleza e doçura impressionaram-me. Trata-se de uma artista: poeta e pintora. Creio que vai ser muito interessante.”
Havia inúmeras outras anotações, até chegar a uma data recente, que era o que me interessava. Encontrei isso:
“ Alma prepara-se para desaparecer. Ela ainda não sabe disso. Sua alma tende a refluir para o seu interior mais profundo. Essa caminhada já começou e tenho dificuldade de acompanhá-la. Estamos às portas do labirinto. Ela é a senhora desse labirinto, mas também não sabe disso. É, não somente regida por Ariadne nessa atual fase de sua vida: ela é Ariadne, na verdade. Ela não sabe que já me permitiu entrar nesse labirinto, soltando-me seu próprio fio. Tive medo, apesar disso, e parei perto do centro, do fundo. Não cheguei a penetrar na câmara do Minotauro. Ela puxou, sintomaticamente, o fio. Creio que ela quer fazer isso pessoalmente, receio que sem a minha presença. Estou envolvido demais com a paciente, para minha vergonha profissional. Mas não quero pensar nesse aspecto. Eu amo Alma, como nunca amei ninguém, nem a minha mulher. Não sei aonde isso vai dar, pois por si só, isto é também o Labirinto.”
Mais adiante encontrei isto:
“ Meu amor e meu desejo por Alma estão me atormentando, mas estamos perto de chegar ao centro. Ela não somente solta o fio, mas acompanha-me pelos corredores sem fim. Ela não percebe, como eu, essa espécie de companheirismo: agora sou dependente dela para retornar. Matarei o Minotauro, junto com ela, ou ela mesma o fará. Depois ela me guiará de volta se não me abandonar ali, meu único temor. Estarei enlouquecendo?”
Mais adiante ainda, isto:
“ Alma destruiu o Minotauro, com a minha ajuda. Foi algo de uma violência indescritível. Uma carnificina, para dizer o mínimo. Tive que reunir toda a minha coragem para manter-me firme e incentivá-la na sua luta heróica. Quando terminou abracei-a fortemente, longamente, e ela chorava muito. As deusas choram, estou vendo. E eu chorava com ela, o que é muito irregular, eu sei. Também beijei as suas pálpebras, seu rosto, e afinal seus lábios. Ela retribuiu, abandonou os seus. Mas não posso aproveitar-me disso, não posso. Retiramo-nos daquele labirinto, saindo pela única saída: a porta de entrada. Ela o conhecia como a palma de sua mão, essa é que é a verdade. Ela é a senhora do labirinto. O resto da sessão fizemos uma viagem de retorno. Buscávamos, por assim dizer, as Ilhas Bem Aventuradas. Nós bem que as merecíamos, depois de tudo, de tanto sofrimento. Mas temo que encontramos uma espécie de Náxos, no caminho. Ela imobilizou-se, e eu retornei sozinho. Estou triste e preocupado. Ela agora está ausente, numa espécie de limbo, ou de ilha neutra, e não sei como retirá-la de lá. Tenho um estranho remorso, como se fosse culpado de deixá-la ali. O que fazer? Ela agora está desaparecida e sei que espera o meu retorno, mas não sei como voltar. Meu pai morreu nesse ínterim, e eu já estava de luto mesmo antes disso acontecer.”
Fiquei pensativa. Eu não imaginava que as coisas tinham chegado a esse ponto. O doutor Platus me amava! Bem que eu já suspeitava. E ele tentara me ajudar, ou eu a ele? Não sei mais. O fato é que ele me abandonara no meio do caminho, em minha Náxos, e eu agora não sabia sair daqui e não poderia contar com ele. Talvez, se eu invocasse a minha alegria... Sim, o meu Dioniso interno, esse deus hermafrodita que sempre regeu as minhas relações. Ele me ajudaria a sair desta espécie de limbo, e chegar às Ilhas Bem Aventuradas, ou pelo menos retornar à minha amada Creta.
Volto a consultar o Diário do doutor Platus:
“ Alma esteve aqui hoje. Ela está desaparecida. Por isso não cabe aqui um diagnóstico de “inflação”. Ao contrário, ela está esvaziada, por assim dizer. Eu poderia aproveitar-me disso, e projetar-me nela. Digo, projetar a minha Anima. Ela ficaria mais dócil nas minhas mãos? Não sei, tenho medo. Esse processo é ilícito para mim, como seu psiquiatra, e poderia revelar-se um tiro pela culatra. Eu ficaria talvez tão tomado pela paixão, que cometeria uma loucura. Quantas vezes o meu desejo encontrou a minha sombra, delineando a forma do estupro. Tenho medo. Sei que a qualquer momento posso ser tomado por esse demônio. Alma corre perigo em minhas mãos. Não, doutor Platus, não exagere. Você, sim, parece inflacionado.”
Dei um gemido. Surpresa? Não, eu não estava surpresa. O doutor Platus não me enganava. Eu já sentira a sua paixão, e o brilho (ou a sombra) do estupro nos seus olhos. Mas eu não me preocupara. Jamais me preocupo. Vou sempre ao limite de tudo. Será que eu o provocava? Disso não tenho plena consciência. Minha natureza parece fazer isso desde criança. Não é a toa que fui estuprada ainda menina, naquela fazenda em Minas Gerais, por aquela “serpente” de olhos verdes. Um jovem adulto, enorme, que quase me matou de dor...e de prazer. Essa é que é a verdade. Sempre esperei ser violentada pelos meus eleitos. Não temo a dor. Tenho o abismo e a volúpia da entrega dolorosa. Serei eu, afinal, uma doente? O doutor Platus detectou isso em mim.
Bem... eu contei tudo a ele, e isso costuma despertar a imaginação dos homens. E o doutor Platus é simplesmente um homem! Porquê estaria imune ao desejo que desperto neles? Por outro lado, serei eu uma espécie de hetaera, para não dizer pior? A verdade é que seu desejo desperta o meu, grande narcisista que sempre fui. Mas...e agora, como sair daqui? Digo, dessa Náxos em que me sinto abandonada?
Volto a ler o final da sua anotação de hoje:
“ Alma virá amanhã. Espero ansiosamente. Sinto que devo possuí-la. Meu instinto diz que só assim a trarei à sua superfície, à plenitude do seu corpo exuberante. Sua matéria sutil precisa ancorar-se. Não, isso não é uma justificativa. Se eu possuí-la, salvaremos a nós dois. Estarei livre deste meu sentimento de culpa, e ela do de seu abandono. Digo mais: devo engravidá-la. Assim a salvarei como mulher. E ela será minha para sempre!”
Botei as fichas no lugar, apaguei a luz, e voltei ao me apartamento com o coração em tumulto.

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Capítulo segundo

Teseu

Passo uma noite extremamente povoada, para uma ausente. Tenho visões em semi-sono, e voltam–me os momentos do combate com o monstro, no centro do labirinto. No fundo, todo o meu ser espera por Teseu, digo, pelo doutor Platus.
Ao amanhecer, dedico-me a uma cuidadosa toilette. Um demorado banho, com ervas. Enxáguo os cabelos com xampu especial. Todos os cuidados com a pele, as unhas, e tudo mais. Penteio-me longamente, depois de secar os cabelos. Agora um leve baton. Visto-me de branco. Um vestido vaporoso, e sandálias prateadas. Sinto-me bela, afinal, e encaminho-me para o consultório do doutor Platus.
Dona Aglaia olha-me com curiosidade, talvez pelo meu aspecto. Pergunta-me como estou, coisa que não costuma fazer. Afinal, ela tem de ser discreta e anódina, por profissão. Como uma escrava, suponho.
Chegando o meu horário, que me pega imóvel, sem estar lendo nenhuma revista, sou chamada e entro na sua sala. Noto que não há mais ninguém esperando depois de mim. E vejo dona Aglaia, estranhamente, vestindo seu casaco e pegando sua bolsa para sair.
O doutor Platus pega-me pela mão, olha dona Aglaia e faz-lhe um sinal disfarçado, como se estivesse apressando-a para que fosse embora. Essas manobras não me passaram despercebidas. Vou sentar-me na poltrona, mas o doutor Platus faz-me um gesto detendo-me e apontando-me o divã, que normalmente seus pacientes não usam, mas que está sempre ali, a postos. Meu coração bate acelerado.
Alma–ele diz–confesso que a esperei com impaciência. Seu caso tem uma certa urgência, não é possível você permanecer assim, desaparecida. Onde você está ? Como passou a noite?
–Doutor Platus, estou estranha. Nunca me senti assim antes. Sinto-me lúcida, mas ao mesmo tempo, ausente. Vejo-me um pouco de fora, por assim dizer, ou talvez demasiado de dentro, não sei ao certo. Dá para entender?
–Sim, Alma, sim, eu acho que compreendo. Deite-se e relaxe. Feche os olhos. Vamos fazer um pouco de retrospecção induzida, como uma hipnose consciente. Há tempos não fazemos isso, mas creio que agora será produtivo. Deixe seu pensamento fluir... para trás. Para aquela sua temporada de férias, naquela fazenda que não era a sua, mas da sua tia em Minas, daqueles primos. Assim...você está passeando no terreiro, agora se encaminha para o paiol. Entra. Sente o cheiro da palha de milho, abundante ali. Tem vontade de deitar-se nela. Agora diga o que vê.
–Vejo as frestas luminosas, entre as tábuas, com os raios de luz fazendo a poeira dançar. Fico vendo os filamentos que aparecem e desaparecem no ar, infinitamente.
–E no que você pensa, Alma?
–Penso justamente na alma, que aquilo parece a minha alma...não sei bem porquê.
–E depois, Alma, o que você vê?
–Uma sombra, doutor. Vejo uma sombra que corta os raios de luz, lá fora. A porta geme, se abrindo. Um vulto... Não enxergo bem, uma silhueta alta. Meu Deus! Ele tranca a porta com a tramela, atrás de si!
–E então, Alma, o que aconteceu?
–Ele fala. A voz é muito grossa. Ele fala!
–O que ele fala, Alma?
–Tenho vergonha, tenho vergonha! Não posso dizer o que ele fala!
–Conte, Alma, conte tudo. Nada tema. O que dizia ele?
–Ele diz: “Priminha, tô de olho em ocê, sei que ocê ainda tá seladinha, depois daquele casamentinho de mentira... Por isso vou entrá no seu buraquinho de trás, que é procê saber o que é um home, mesmo, e depois ainda podê casar de verdade.”
–Alma! O que aconteceu então?
– Ai, doutor Platus! Ai! Dói demais. Estou sendo aberta, como um fruto! Estou sendo rasgada ao meio. Socorro! Doutor Platus, ajude-me! Ele está dentro de mim, inteiro, ai! Agora se movimenta, rápido. Quer virar-me do avesso. Ai, já não sinto mais dor. Agora sinto prazer. Entrego-me inteira. Ele ofega e sussurra em minha orelha. Diz que vai explodir dentro de mim, Ai doutor, quero morrer de... prazer!
–Sim, Alma. É assim, veja, é assim – disse o doutor Platus, tirando a minha calcinha. Assim... Alma, não dói.. Você não quer na frente? Na frente não dói...Não? Está bem, atrás... como ele fez, não é ? Veja, é preciso estar lubrificado. Veja como eu entro em você... Estamos juntos. Nada tema.
Sim, doutor Platus, sim, o senhor pode fazer. Já não dói mais. Pode fazer, doutor Platus, pode fazer...
Ele ficou longamente entrando e saindo de dentro de mim. Retirava a sua lança, e levantando-me as pernas sobre os seus ombros, olhava-me toda aberta e introduzia de novo. Afinal explodiu seu sêmen dentro de mim, que escorreu numa golfada sobre aquele divã. Ele permaneceu um longo momento olhando-me assim aberta , com as palmas de suas mãos nas minhas nádegas, abrindo-as, expondo-me, devassada, avaliando a sua obra. Sob esse olhar, igualmente invasor, percebi, de relance, um longo fio de prata, que saindo da ponta do seu enorme membro congestionado e rubro, ainda me unia a ele, como um insólito cordão umbilical. Então, tive um violento orgasmo. Orgasmos múltiplos, como um labirinto, sacudiram-me entre suas mãos, que me mantinham assim para observar minhas contrações estertóricas. Então, um súbito relaxamento, quase como um desmaio, ou uma doce fração da morte, me tomou. Permaneci vagando, fora do tempo, nas Ilhas Bem Aventuradas ou nos Elíseos, que sei eu?...
Depois de um longo momento de lassidão, de ambos, o doutor Platus começou a querer balbuciar desculpas, mas isso não me interessava. Queria mesmo é que ele fizesse aquilo novamente. Suas desculpas me decepcionavam.
Saí do seu consultório andando com dificuldade. Aquilo já me acontecera outras vezes na vida. Essa é que é a verdade. Mas, no corredor, amparada ainda pela mão do doutor Platus, dei-me conta de que fora novamente estuprada. Mas, ao mesmo tempo, sentia-me feliz. Percebi que me materializara, por assim dizer.
O doutor Platus demorou a soltar-me a mão e só o fez quando a porta do elevador já se fechava.
Cheguei ao meu estúdio e joguei-me na cama. Mas eu percebera ao entrar, que o seu Ermírio me saudara com alegria e surpresa. Perguntou-me se eu estivera viajando e onde estava a minha mala.
Respondi-lhe que eu viajara sem bagagem, o que o deixou muito espantado. Mas eu não expliquei nada. Só queria disfarçar o meu andar penoso, e chegar logo na minha cama.
Passei uma tarde e uma noite quase normais, apesar da dor. Não foi possível pintar, já que o faço de pé durante muitas horas. Mas escrevi alguma poesia. Eu me sentia centrando-me e corporificando-me cada vez mais. Eu reentrava em meu eixo. Eu necessito do amor corporal. Necessito ser tocada e atingida para poder produzir arte: Pintura, contos e poesia. Uma coisa depende da outra, se alimentam mutuamente. Preciso amar e ser amada. Mas preciso possuir e ser possuída fisicamente, mesmo que seja com violência, ou nada poderei criar nesta vida.
Amar, criar, gozar plenamente, esse é o sentido da vida para mim. Tudo o mais é balela. Tudo o mais é... fútil. Ser penetrada é...essencial, e toca-me o manancial da arte, em mim.
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No dia seguinte recebi um telefonema do doutor Platus. Ele falava agora pessoalmente, não mandava a dona Aglaia passar recado. Queria ver-me, estava levemente ofegante. Pensei: “o doutor agora considera-me sua, e vai declarar-se logo”. Dito e feito. Ainda pelo telefone, ele disse:
–Alma, preciso vê-la imediatamente. Venha aqui, ou deixe-me ir aí. Alma, eu a amo. Quero explicar-me com você. Quero dizer-lhe porque fiz aquilo. Você está bem? Não está magoada? Você entendeu, Alma? Não quero perdê-la. Posso vê-la, Alma, logo?
—Sim, Doutor Platus—eu respondi.–Está tudo bem, eu compreendi. O senhor não me magoou. O quê? Não quer que eu o chame mais doutor... Porquê? Bem, está bem... Platus. É esquisito chamá-lo assim. Não sinto essa intimidade, por incrível que pareça, me desculpe. O que ocorreu... Bem doutor, o senhor se aproveitou oportunamente de mim, e me salvou. Sou-lhe grata. Não, não estou machucada, nem ofendida. Muito menos humilhada. Eu sabia, doutor Platus, que isso aconteceria, só não sabia que seria assim... por trás. Está envergonhado? Eu não. O senhor quer vir aqui? Sim... pode vir, mas não hoje...daqui a dois dias. Preciso me recuperar, fisicamente. Não, não... estou apenas dolorida. Meu corpo todo dói. Desaparecer causa muita tensão muscular, e ser estuprada, mais ainda. Não, não estou sendo irônica. O senhor já me conhece, sou sincera e objetiva, acho. Está bem. Sim, outro. Até lá.
No dia seguinte pintei um pouco. Comecei um quadro, mas o esforço de encher uma tela é maior no início. Exige muita tinta e esfregaço de pincel para impregnar a tela. Meu corpo ainda se ressentia. Mas, pelo menos eu me sentia presente e a minha própria matéria se adensava, como as camadas que eu aplicava sobre a tela. Como a vida é misteriosa e bela!.... Quero fruir e conhecer todos os meandros do ser, do existir...em plena consciência.
Quanto às profundezas... eu sei que é um reino ainda maior que o que existe sob as águas dos oceanos. Sabemos muito pouco dessas camadas subjacentes, profundas.
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Dois dias depois, de manhã, lá pelas 10 horas, o telefone tocou. Era o doutor Platus pedindo para visitar-me imediatamente. Aceitei, dei-lhe permissão. Mas não me preparei, nem me arrumei especialmente. Ele anunciou-se na portaria e subiu. Abri-lhe a porta e ele quis logo abraçar-me e beijar-me. Pus-lhe uma barreira, afastando-o com as palmas das mãos no seu peito. Ele então disfarçou, sentou-se numa cadeira de lona que uso para observar os quadros, deu um assobio, depois voltou a olhar-me nos olhos e disse:
–Alma, Quero conversar com você sobre tudo o que aconteceu. Cheguei a uma conclusão: o fenômeno que ocorreu com você foi muito grave. Tive de traze-la do mais profundo recesso do seu labirinto. Você está consciente de que eu também podia me perder ali? Senti-me perto da morte psíquica. Não quero me vangloriar, mas tive que enfrentar a sua sombra... e ela me apareceu assim tão real como estou lhe vendo. E era...o Minotauro!. Depois, tive de abandoná-la, para recuperar minhas próprias forças. Nesse ínterim, meu pai morreu e eu permaneci um tempo de luto, não podia voltar. Mas isso me permitiu maturar meu plano de resgate. Você viu. Eu estava certo. Você precisava reviver aquela experiência traumática, para voltar a adensar a sua matéria. A dor precisava ser revivida, você me entende. Você me perdoa?
—Mas doutor Platus, porquê o senhor se justifica, se foi tudo para o meu bem, e se o senhor me resgatou, como o senhor diz? Aliás, estou disposta a aceitar isso. Não estou me queixando de nada. Sinto-me até bem, novamente. E a dor física também passou. Mas devo lhe dizer, doutor Platus, que o seu amor não é nada platônico...Também não estou convencida de que eu estivesse jamais traumatizada por aquele evento da minha infância. Aquilo, pelo contrário, libertou-me sexualmente muito cedo, se é que eu pudesse estar presa. Não estou convencida de que o meu desaparecimento recente tenha qualquer ligação com aquele evento da minha infância, embora a ação do doutor tenha funcionado muito bem como chamado à matéria, ou ancoramento, como o senhor diz. De qualquer modo, doutor Platus, sou-lhe grata.
–Alma–ele disse– você é desconcertante : trata aquilo que se passou
como uma simples intervenção cirúrgica. Para mim foi um ato de amor! Você entende? Uma expressão espontânea do amor que sinto por você já há muito tempo. Desde que você adentrou o meu consultório pela primeira vez há um ano atrás. Muito tive que me conter, me reprimir. Você pode imaginar.
–Sim, doutor Platus, eu acredito. Eu imagino. Mas se o senhor está me cobrando uma reciprocidade, só posso lhe dizer que sou grata e que preciso da sua amizade. O senhor me penetrou no seu consultório, como expressão de amor, e eu posso concordar com isso. Sei que é assim. Os homens penetram com violência as mulheres como expressão do seu amor. E nosso orgasmo, já foi um dia chamado de “pequena morte”...
Platus permaneceu olhando-me em silêncio, consternado. Minha reação não era o que ele esperava. Como homem, queria, na certa, que eu me declarasse apaixonada e lhe caísse nos braços exclamando: “Platus, meu amor, toma-me, sou tua. Penetra-me mais uma vez, mais mil vezes, faz de mim o que quiseres, para o teu prazer.” Não, não era esse o homem. E o momento também já passara.
Platus percebeu isso. Olhou em volta, parou em frente de uma grande tela, chamada “Orgasmo”. Suspirou, e partiu.
Decidi interromper a minha análise. Ou dá-la por encerrada. Eu me dera alta.
Eu voltara a mim. Não mais esperava Teseu.

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Capítulo terceiro

A Volta de Dioniso


Estou pintando muito e maravilhosamente. Só coloco no aparelho músicas triunfais ou alegres, enquanto me movimento rapidamente, manuseando grandes telas, deslocando-as de um lado para outro, dando bravas pinceladas, com gestos largos. Chego a dar alguns passos de ballet entre as telas, com o pincel na mão, o que é, no mínimo, insólito. Faz-me pensar numa coreografia que nunca vi, sobre uma pintora. Deve haver algum ballet assim. Ou deveria haver.
Quando o trabalho rende, no fim do dia a satisfação é imensa. Fico horas olhando meus próprios quadros em processo. Depois começo a querer uma outra espécie de compensação pelo esforço. Um outro tipo de prazer. Queria ser abraçada e possuída... pelo meu amor. Queria que esse amor, quem quer que fosse ele, me dissesse: “Alma, querida, que maravilha, que beleza o seu trabalho. Que coisas lindas você fez... Venha, vamos para o quarto, deixe-me beijá-la da cabeça aos pés. Você relaxará. Quero enchê-la de prazer com o meu amor. Vou lambê-la como a uma bezerrinha, longamente. Abandone-se, Alma, o seu trabalho terminou por hoje.”
Ah! Como eu vivo sonhando!... Nunca ouvi, propriamente essas palavras. No entanto, fui bastante amada, e desejada. Porquê então nada me satisfaz? Quero o amor total, absoluto. Mas o que será realmente isso? Às vezes me ocorre que eu precisaria ser morta pelo meu amor no auge do meu orgasmo, como naquele filme “Império dos Sentidos”, o rapaz pela sua amante. Mas, eu queria ser penetrada por um arpão de carne tão grande que me rasgasse ao meio. Devo ser doida. Ou uma masoquista. No momento só posso contar com o doutor Platus e sua lança sanguinolenta (isso fez-me dar uma risada). Meu sodomizador junguiano emérito...(dei uma gargalhada maior ainda).
Não importa, estou alegre. Vou encontrar um amante, homem ou mulher, não importa, desde que me ame e que me deseje loucamente. A esse ser, eu me darei até meu sangue escorrer.
E se eu chamar aquela pobre Regina, dos cachorrinhos? Ela poderia , num momento, fazer jus ao seu nome? E ela poderia trazer também os cachorrinhos, que lamberão o que sobrar. Ai, estou ficando escabrosa. Bem, quero experimentar também uma maravilhosa pornografia. Realmente, estou ficando louca.
Estou ficando eufórica. Entusiasmada demais, ou exaltada. Devo procurar o doutor Platus afinal. Talvez eu esteja doente. Dizem que a tal PMD é isso: depressão e euforia se sucedendo rapidamente. Mas não, não sinto que seja esse o meu caso. Serei eu uma histérica? Só quero amar e ser amada.
Preciso de serenidade, e não consigo mais vê-la no meu horizonte, estando solitária. As Ilhas Bem Aventuradas! Preciso atingi-las a bordo do navio do meu herói, resgatada dessa Náxos sem forma, sem contornos, limbo dos navegantes.
Vem, meu amor, não mais como Teseu, que me abandonou nesta ilha, mas como Dioniso, alegria há muito esperada. Vem, leva-me para os Elíseos, onde a felicidade nunca acaba, o orgasmo é infinito e não se assemelha à morte. Vem, Dioniso, meu deus hermafrodita, vem em forma de homem ou mulher, eu estou pronta para amar com infinita alegria!
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Saio uma manhã para andar pelos quarteirões do meu bairro. Preciso fazer exercício. Ando bastante e chego a suar. Volto para casa para me banhar e recomeçar a pintar. Quando reentro na portaria, o seu Ermírio me diz:
– Dona Alma, a sua amiga está aí, esperando a senhora lá em cima. Ela ainda tem a chave, não é? Ela me disse que combinou com a senhora. Fiquei meio sem saber o que fazer, não tive coragem de barrá-la. Ela parece uma boa moça. Fiz bem?
–Sim, sim, seu Ermírio, o senhor fez bem, neste caso. Ela realmente tem as chaves, não as tomei, ela é sempre bem vinda. Obrigada.
Seu Ermírio abriu-me, solícito como sempre, a porta do elevador, e eu mal continha a minha excitação.
Quando toquei a porta do apê, percebi que ela estava aberta. Entrei e tive uma surpresa maior: Vânia descera o seu vestido abaixo dos seios, que expunha nus, linda como sempre, em frente ao meu cavalete, com uma enorme tela azul como o Mediterrâneo, nele, de fundo. Mas, o mais insólito: ela tinha na mão direita, um enorme falo de silicone, extremamente realista, inclusive nas cores. De sua base pendiam correias de couro. Com os braços abertos ela o brandia levemente, e sorria. A safadinha chegou a exclamar um “Tcham!” gaiato, e seus olhos riam como os lábios.
Caímos numa gargalhada imensa, enquanto nos abraçávamos loucamente.
Dioniso voltara, e com ele a duradoura alegria.

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