sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Ariadne em Náxos (de Alma Welt)


Estatueta de faiança colorida, de 1.600 A.C., no apogeu da cultura miceno-cretence, descoberta pelo arqueólogo inglês Arthur Evans nas escavações por ele realizadas no palácio de Mino em Cnossos, Creta. Ele a denominou "a sacerdotisa das serpentes", porque assim a supôs. De qualquer forma, essa graciosa estatueta que tem a figura de um gato sobre a cabeça, revela a curiosa moda das mulheres cretenses naquele período, com vestidos longos de babados e os seios à mostra sobre um apertado corpete.

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ARIADNE EM NÁXOS

( 1° capítulo da novela ARIADNE em três capítulos, pertencente à Trilogia Mítica de Alma Welt)



"Eu andava ali, nas sendas do obscuro reino, cujo rei nunca foi visto, e do qual, seus súditos, que eu não via, nunca tiveram notícias, imersos que estavam em trevas muito antigas.”



Um dia, subitamente, desapareci. Não pude encontrar-me em parte alguma. Andava pelo meu estúdio, agoniada, tentando dar-me conta do meu paradeiro. É verdade que os primeiros sinais do meu desaparecimento já se tinham iniciado há alguns dias, mas eu não quisera deter-me a pensar naqueles sintomas. Uma vaga nostalgia, alternada a uma ansiedade súbita: um não sentir-me bem dentro da minha pele; uma vontade de retornar não sei para onde, reprimida como indesejável. Voltar ao sul? Não, não se tratava disso. Se fosse assim, teria sido fácil lidar com isso.
Eu estava ali, perdida de mim, em meu próprio apartamento. Se eu ainda estivesse no labirinto, saberia o que fazer: tenho dentro de mim um comprido fio que eu percorreria enrolando-o novamente. Mas não, eu não estava em parte alguma. Tinha mesmo desaparecido.
Após três dias, ouvi vozes no corredor e em frente à porta. Mexiam na fechadura e logo a abriram. Vi entrarem o zelador, seu Ermírio, a síndica, dona Aurélia e sua filha Regina. Seu Ermírio dizia:
–Ela não está, dona Aurélia, estou lhe dizendo. Tenho observado o apartamento, quando venho fechar as janelas dos corredores de serviço, por causa das chuvas. Nenhum movimento e nenhuma luz acesa, de noite. Nada de som de televisão ou rádio, ou qualquer outro.
–Mas, Ermírio–disse dona Aurélia–Você não a viu sair de malas? Estamos no fim do ano, algumas pessoas já pararam de trabalhar e começam a sair de férias... Você tem certeza que ela não passou pela portaria? E os outros funcionários? Ela poderia ter saído num momento de troca de porteiro. Não houve um momento sem ninguém na portaria? Alguns minutos que fossem?
–Não, dona Aurélia. E sua filha também não viu ela, não é mesmo, Regina?
–É, mamãe. Eu acho muito estranho. Olhe a cama dela, está desfeita. Ela não parece pessoa que iria viajar deixando a cama assim. Tudo o mais é tão ordeiro por aqui, apesar de ser um estúdio. Somente as telas, no chão, o que me parece normal. Olhe, mamãe, como é belo aqui. E que quadros! Como ela pinta! É lindo demais. E quantos livros!
– Mas Regina, não é hora de reparar nisso. Há algum mistério aqui.
Estou cada vez mais preocupada. Essa moça é muito independente. Ah! se fosse minha filha... Eu a traria, aqui, rente, no cabresto.
– Como você faz comigo, não é? Estou farta, fique a senhora sabendo. Já não sou criança. Tenho 38 anos e a senhora não larga do meu pé.
Ah! Como eu queria ser como a Alma! Ela é tão linda! É verdade que ela me abala um pouco com aquela beleza toda e aquele olhar tão misterioso e meigo. Quando acontece de a gente se encontrar no elevador, subindo ou descendo, meus cachorrinhos ficam mais silenciosos, quietos. Não latem e não parecem amedrontados. Como eu, eles não desgrudam o olhar dos olhos dela. Eu fico também paralisada, inibida, não sei o que falar. Mas não é medo, é uma fascinação. Aquele olhar tão profundo, e tão doce... Tenho vontade de chorar, quando me vejo assim diante dela, a sós, no elevador.
Eu ouvia aquilo, comovida. Eu, na verdade, nunca dera muita atenção à Regina, e apenas a olhava nos olhos, no elevador, tanto quanto aos seus lulus brancos, sempre tão limpinhos, como flocos de algodão, que, muito agitados, paravam mesmo, quando me viam.
–Regina, eu sei o que você quer dizer. Eu vejo pouco essa moça. Ela nunca vai à reunião de condomínio, mas eu adquiri suas gravuras para o prédio, assim que as vi. Ela deixou de pagar o condomínio por um ano, em troca delas. Aquelas doze gravuras lindas foram descontadas uma por mês. Penduramos elas imediatamente, e durante a reunião os outros condôminos nem hesitaram em aprovar unanimemente. Elas valorizaram o aspecto das nossas portarias, nos dois blocos. Gosto muito dela também. Sempre apoia de antemão minhas iniciativas, embora não compareça às reuniões. Por isso, e por tudo, me preocupo com ela. Ela não parece ter pai, nem mãe, nem é visitada por familiares. Percebe-se que, de tempos em tempos, ela vive um temporada com alguém. Uma amiga ou outra, sempre muito belas, também. Houve um namorado, há alguns anos, com quem ela saia de mãos dadas, muito alegre. Ela parecia muito feliz, naquele tempo.
–Mas, mamãe, ela parece sempre feliz. É isso que me intriga. Sempre sorri para a gente, embora não fale, quase. Ela é reservada, de um jeito diferente, porque o seu sorriso é muito belo e faz bem à gente, como se ela estivesse se dando, sei lá...
–Pois é, Regina, por isso estou mais preocupada ainda. Talvez devamos chamar a polícia. Eles poderiam fazer uma investigação, achar uma pista, que sei eu?... Essa moça pode estar em apuros. Vamos, Regina, procure um bilhete, uma carta, uma mensagem qualquer por aí. Olhe debaixo da cama, também...
Eu me sentia curiosa e fiquei observando o movimento dos três. Seu Ermírio não ousava tocar em nada, mas olhava perplexo para todos os lados, parecendo nunca ter visto nada como aquilo tudo. Quero dizer, o aspecto do meu estúdio, que certamente não pareceria uma casa, um lar, aos seus olhos. E a minha cozinha, então, que não era separada do salão e nem tinha um pingüim em cima da geladeira! Sorri com esse pensamento, mas logo pus-me aflita e aproveitei para sair com eles quando resolveram ir embora para tomar alguma providência. Fecharam a porta por fora com a chave mestra com a qual a tinham aberto e eu dei-me conta de que eu não pegara as minhas chaves. Resolvi ir procurar Aline. Afinal, eu tinha um bom pretexto: ela ainda tinha as minhas chaves. Há meses eu não a via, por orgulho, desde que ela me deixara. Mas agora eu podia procurá-la, pois afinal, eu estava desaparecida, e precisava das minhas chaves. Ela me receberia de braços abertos, eu imaginava. Nunca rompemos formalmente. Ela me abandonou com um grande beijo e um sorriso, se bem me lembro. Nunca imaginei que ela iria mesmo me deixar, embora ela viesse falando nisso, como hipótese. Mas, não quero lembrar dos momentos tão dolorosos que se seguiram. Agora é o momento de procurá-la, eu sei.
Cheguei ao prédio da Aline, passei pela portaria e não me perguntaram nada. Tomei o elevador e subindo até o seu andar, toquei-lhe a campainha e ela me abriu a porta com um ar perplexo, os olhos muito abertos.
– Alma, você por aqui? Você está desaparecida, onde você está? Ah! minha querida, dê-me um abraço, assim, forte, e um beijo. Entre, entre, não repare a bagunça. O Pedro é muito bagunceiro e eu, você sabe, não menos, não é? Não sei como você me agüentava. Mas sente-se aí no chão, Alma, nessas almofadas, vou pegar um vinho para nós. Precisamos brindar a esse nosso reencontro.
Aline me conhecia, sabia quando eu desaparecia, e não se importava demais com isso, aparentemente. Ela estava ali, diante de mim, e meus olhos se enchiam, de lágrimas. Eu ainda a amava... e não mais sabia o que fazer com esse fato. Abraçá-la? Beijá-la? Não, não se tratava mais disso. Talvez eu quisesse compartilhar com ela o meu desaparecimento, por narcisismo. Eu que fui por tanto tempo o seu espelho, agora parecia um espelho vazio, ela não me veria sequer como um reflexo. Uma dor súbita apertou-me o peito. Tomei o vinho com ela, como duas boas amigas, mas ela estava levemente constrangida. Percebi que o meu desaparecimento já não lhe dizia respeito. Eu desaparecera tarde demais.
Saí dali, entristecida, sem despedir-me e sem ser percebida. Resolvi procurar Vânia. Ela saberia, talvez, o que fazer com o meu desaparecimento. Talvez trazer-me de volta, sei lá.
Cheguei cansada de tanto andar. Subi os inúmeros degraus até a porta de sua casa. Toquei a campainha e a sua empregada abriu-me o portão. Ela me esperava na porta e abraçou-me, comovida. Choramos muito, abraçadas, e ela dizia:
– Alma, Alma, como você pôde desaparecer assim? Que lhe fizemos, Alma? Você não nos avisou nada. A nenhum dos seus amigos. Estamos sentindo a sua falta, sua ingrata! Quando você vai reaparecer?
Abracei-a e beijei-a. Quis levá-la até o seu quarto, mas ela, pela primeira vez, hesitou. Disse:
–Alma, nada podemos fazer, enquanto você estiver assim...sumida .Eu não me sentiria bem, nem você, acredito. Tenho medo de você evaporar-se diante dos meus olhos, Eu não agüentaria. Já sofri demais por você, também, Alma, você sabe.
Depois de ouvir isso, eu quis sair logo dali. Comecei a chorar, lembrando do nosso amor, e das nossas ardentes noites de paixão, quando parecíamos entrar, literalmente uma dentro da outra, embora só pudéssemos introduzir uns dedinhos, essa é que é a verdade.
Ai, quanta dor, quanta nostalgia do amor que ainda carregávamos dentro de nós, dos nossos seios, vaginas e úteros. Dos nossos lábios que viviam grudados, outrora, a não muito tempo atrás.
Deixei-a também, e de cabeça baixa, desci aqueles degraus, como um espectro de mim mesma. Eu já não me sentia ali, já não me sentia em parte alguma. Era melhor procurar o meu analista. O dr. Platus saberá, talvez, lidar com isso. Talvez possa me aconselhar... e fazer-me reaparecer. Afinal, é para isso que ele é pago, não é mesmo? Afinal, um psicólogo é um investigador, um detetive da alma, terá que dar-me notícia do meu paradeiro.
Atravesso o meu bairro todo, então canso e tomo um táxi, desço em frente ao consultório do dr. Platus. Não marquei hora com ele. Nem sequer telefonei. Mas algo me diz que ele me receberá, achará um horário para mim, ou uns minutos entre consultas. Afinal, trata-se de uma emergência...
Sua secretária, surpresa, pergunta-me se eu falei diretamente com o doutor, pois não lhe consta que eu tenha horário hoje. Consulta sua agenda, e reitera:
–Alma, não é seu dia hoje. Você tem hora amanhã, e mais cedo, você sabe. Você tem algum problema, querida? Você está meio desaparecida, agora vem assim, fora do seu dia e horário. Mas espere, o doutor já está terminando uma consulta. Quem sabe...
O doutor Platus abriu a porta, despedindo-se de uma moça. Olhou-me com surpresa, e à dona Aglaia. A secretária quis justificar-se, mas ele fez um sinal, e com um sorriso receptivo, pegou-me pela mão e introduziu-me na sua sala.
Sentou-se na sua poltrona com um gesto para que eu me sentasse e disse:
–Alma, Alma. Algo me dizia que você desaparecera. Percebi os primeiros sinais, na nossa última sessão. Tentei preveni-la, lembra-se?. Mas você não levou em consideração, e não havia nada que eu pudesse fazer para deter o processo. Você sabe... há um certo determinismo quanto a isso. Sei detectar os primeiros sintomas. Aquele seu ar vago, aqueles suspiros, o olhar distante e distraído. Mas, não somente isso, é claro, isso acontece freqüentemente com algumas pessoas sonhadoras. Mas, o conteúdo de suas palavras, Alma, é que me alertou, na nossa última sessão. Você insistia que o seu lugar não era aqui, e que a sua alma estava deslocada. Que ansiava recolher-se a uma profundidade que você não definia bem. Você me preocupou, Alma. Diga-me agora o que você está sentindo. Preciso entender para poder ajudá-la. Conte-me tudo. Onde você está?
Dei um soluço e explodi em lágrimas. Eu não sabia exatamente porquê. Não chorava por mim. Eu estava ausente. Chorava pelo amor das pessoas. Pelo amor que eu percebia neste médico, neste analista, neste homem bom, que nitidamente me amava, sem poder jamais declarar-se. Resolvi, naquele momento, voltar à noite ao seu consultório, escondida, para ler a minha ficha, isto é, as suas anotações ao meu respeito. Sei que isso é muito irregular, nada ético, mas não me importo: é o único meio de saber o que se passa comigo, pois suspeito que o doutor Platus sabe muito mais do que quer me dizer. Além disso ele parece um pouco inibido de abrir-se comigo, temendo uma inversão de papéis, talvez.
Despedi-me do meu analista, que se desculpava por não ter uma hora inteira para mim (50 minutos), afinal não era mesmo o meu horário e dia, mas que desejava que eu suportasse tudo com coragem, e não fizesse nenhuma besteira durante a minha ausência. Amanhã nos veríamos.
Voltei para casa, passei pela portaria sem ser notada, e diante da minha porta lembrei-me de que eu não tinha a chave, que ficara dentro, a porta trancada pela dona Aurélia, por fora. Mas resolvi entrar assim mesmo, instintivamente confiante na sutileza da minha matéria, naquele estado de ausência em que me encontrava. Me vi imediatamente do lado de dentro, o que aumentou a minha confiança na empreitada noturna a que me dispusera, penetrando no consultório do doutor Platus para fuçar o seu arquivo.
Esperei a noite chegar, com aquela paciência dos ausentes, que parecem não ter pressa para nada, muito menos para retornar. Desconfio que havia uma mudança do sentido do tempo. Eu poderia facilmente projetar-me no amanhã, que seria a mesma coisa, pois, desaparecida, eu não poderia realmente agir sobre o mundo, afirmar minha presença.
Lá pelo que seriam 10 horas da noite, encaminhei-me para o consultório do dr Platus. Logo vi-me na sua sala de consultas, às escuras. Acendi a luz, sem receio, já que não poderia ser flagrada por nenhum eventual vigia noturno, que no máximo encontraria a luz acesa, as pastas remexidas, e atribuiria a um misterioso ladrão.
Encontrei logo a minha pasta e sofregamente comecei a ler:
“ Alma Welt
Minha paciente desde ....de Setembro de 19... Gaúcha de..... ,filha de pai médico e fazendeiro, órfã de mãe desde a sua idade de 13 anos, e de pai há quatro anos.
“ A paciente adentrou o meu consultório, em estado de melancolia, como ela mesma definiu. Preferi não precipitar-me num diagnóstico de depressão, ou de PMD, já que seus sintomas secundários são atípicos. A moça sorri, embora tristemente, e sua beleza e doçura impressionaram-me. Trata-se de uma artista: poeta e pintora. Creio que vai ser muito interessante.”
Havia inúmeras outras anotações, até chegar a uma data recente, que era o que me interessava. Encontrei isso:
“ Alma prepara-se para desaparecer. Ela ainda não sabe disso. Sua alma tende a refluir para o seu interior mais profundo. Essa caminhada já começou e tenho dificuldade de acompanhá-la. Estamos às portas do labirinto. Ela é a senhora desse labirinto, mas também não sabe disso. É, não somente regida por Ariadne nessa atual fase de sua vida: ela é Ariadne, na verdade. Ela não sabe que já me permitiu entrar nesse labirinto, soltando-me seu próprio fio. Tive medo, apesar disso, e parei perto do centro, do fundo. Não cheguei a penetrar na câmara do Minotauro. Ela puxou, sintomaticamente, o fio. Creio que ela quer fazer isso pessoalmente, receio que sem a minha presença. Estou envolvido demais com a paciente, para minha vergonha profissional. Mas não quero pensar nesse aspecto. Eu amo Alma, como nunca amei ninguém, nem a minha mulher. Não sei aonde isso vai dar, pois por si só, isto é também o Labirinto.”
Mais adiante encontrei isto:
“ Meu amor e meu desejo por Alma estão me atormentando, mas estamos perto de chegar ao centro. Ela não somente solta o fio, mas acompanha-me pelos corredores sem fim. Ela não percebe, como eu, essa espécie de companheirismo: agora sou dependente dela para retornar. Matarei o Minotauro, junto com ela, ou ela mesma o fará. Depois ela me guiará de volta se não me abandonar ali, meu único temor. Estarei enlouquecendo?”
Mais adiante ainda, isto:
“ Alma destruiu o Minotauro, com a minha ajuda. Foi algo de uma violência indescritível. Uma carnificina, para dizer o mínimo. Tive que reunir toda a minha coragem para manter-me firme e incentivá-la na sua luta heróica. Quando terminou abracei-a fortemente, longamente, e ela chorava muito. As deusas choram, estou vendo. E eu chorava com ela, o que é muito irregular, eu sei. Também beijei as suas pálpebras, seu rosto, e afinal seus lábios. Ela retribuiu, abandonou os seus. Mas não posso aproveitar-me disso, não posso. Retiramo-nos daquele labirinto, saindo pela única saída: a porta de entrada. Ela o conhecia como a palma de sua mão, essa é que é a verdade. Ela é a senhora do labirinto. O resto da sessão fizemos uma viagem de retorno. Buscávamos, por assim dizer, as Ilhas Bem Aventuradas. Nós bem que as merecíamos, depois de tudo, de tanto sofrimento. Mas temo que encontramos uma espécie de Náxos, no caminho. Ela imobilizou-se, e eu retornei sozinho. Estou triste e preocupado. Ela agora está ausente, numa espécie de limbo, ou de ilha neutra, e não sei como retirá-la de lá. Tenho um estranho remorso, como se fosse culpado de deixá-la ali. O que fazer? Ela agora está desaparecida e sei que espera o meu retorno, mas não sei como voltar. Meu pai morreu nesse ínterim, e eu já estava de luto mesmo antes disso acontecer.”
Fiquei pensativa. Eu não imaginava que as coisas tinham chegado a esse ponto. O doutor Platus me amava! Bem que eu já suspeitava. E ele tentara me ajudar, ou eu a ele? Não sei mais. O fato é que ele me abandonara no meio do caminho, em minha Náxos, e eu agora não sabia sair daqui e não poderia contar com ele. Talvez, se eu invocasse a minha alegria... Sim, o meu Dioniso interno, esse deus hermafrodita que sempre regeu as minhas relações. Ele me ajudaria a sair desta espécie de limbo, e chegar às Ilhas Bem Aventuradas, ou pelo menos retornar à minha amada Creta.
Volto a consultar o Diário do doutor Platus:
“ Alma esteve aqui hoje. Ela está desaparecida. Por isso não cabe aqui um diagnóstico de “inflação”. Ao contrário, ela está esvaziada, por assim dizer. Eu poderia aproveitar-me disso, e projetar-me nela. Digo, projetar a minha Anima. Ela ficaria mais dócil nas minhas mãos? Não sei, tenho medo. Esse processo é ilícito para mim, como seu psiquiatra, e poderia revelar-se um tiro pela culatra. Eu ficaria talvez tão tomado pela paixão, que cometeria uma loucura. Quantas vezes o meu desejo encontrou a minha sombra, delineando a forma do estupro. Tenho medo. Sei que a qualquer momento posso ser tomado por esse demônio. Alma corre perigo em minhas mãos. Não, doutor Platus, não exagere. Você, sim, parece inflacionado.”
Dei um gemido. Surpresa? Não, eu não estava surpresa. O doutor Platus não me enganava. Eu já sentira a sua paixão, e o brilho (ou a sombra) do estupro nos seus olhos. Mas eu não me preocupara. Jamais me preocupo. Vou sempre ao limite de tudo. Será que eu o provocava? Disso não tenho plena consciência. Minha natureza parece fazer isso desde criança. Não é a toa que fui estuprada ainda menina, naquela fazenda em Minas Gerais, por aquela “serpente” de olhos verdes. Um jovem adulto, enorme, que quase me matou de dor...e de prazer. Essa é que é a verdade. Sempre esperei ser violentada pelos meus eleitos. Não temo a dor. Tenho o abismo e a volúpia da entrega dolorosa. Serei eu, afinal, uma doente? O doutor Platus detectou isso em mim.
Bem... eu contei tudo a ele, e isso costuma despertar a imaginação dos homens. E o doutor Platus é simplesmente um homem! Porquê estaria imune ao desejo que desperto neles? Por outro lado, serei eu uma espécie de hetaera, para não dizer pior? A verdade é que seu desejo desperta o meu, grande narcisista que sempre fui. Mas...e agora, como sair daqui? Digo, dessa Náxos em que me sinto abandonada?
Volto a ler o final da sua anotação de hoje:
“ Alma virá amanhã. Espero ansiosamente. Sinto que devo possuí-la. Meu instinto diz que só assim a trarei à sua superfície, à plenitude do seu corpo exuberante. Sua matéria sutil precisa ancorar-se. Não, isso não é uma justificativa. Se eu possuí-la, salvaremos a nós dois. Estarei livre deste meu sentimento de culpa, e ela do de seu abandono. Digo mais: devo engravidá-la. Assim a salvarei como mulher. E ela será minha para sempre!”
Botei as fichas no lugar, apaguei a luz, e voltei ao me apartamento com o coração em tumulto.

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Capítulo segundo

Teseu

Passo uma noite extremamente povoada, para uma ausente. Tenho visões em semi-sono, e voltam–me os momentos do combate com o monstro, no centro do labirinto. No fundo, todo o meu ser espera por Teseu, digo, pelo doutor Platus.
Ao amanhecer, dedico-me a uma cuidadosa toilette. Um demorado banho, com ervas. Enxáguo os cabelos com xampu especial. Todos os cuidados com a pele, as unhas, e tudo mais. Penteio-me longamente, depois de secar os cabelos. Agora um leve baton. Visto-me de branco. Um vestido vaporoso, e sandálias prateadas. Sinto-me bela, afinal, e encaminho-me para o consultório do doutor Platus.
Dona Aglaia olha-me com curiosidade, talvez pelo meu aspecto. Pergunta-me como estou, coisa que não costuma fazer. Afinal, ela tem de ser discreta e anódina, por profissão. Como uma escrava, suponho.
Chegando o meu horário, que me pega imóvel, sem estar lendo nenhuma revista, sou chamada e entro na sua sala. Noto que não há mais ninguém esperando depois de mim. E vejo dona Aglaia, estranhamente, vestindo seu casaco e pegando sua bolsa para sair.
O doutor Platus pega-me pela mão, olha dona Aglaia e faz-lhe um sinal disfarçado, como se estivesse apressando-a para que fosse embora. Essas manobras não me passaram despercebidas. Vou sentar-me na poltrona, mas o doutor Platus faz-me um gesto detendo-me e apontando-me o divã, que normalmente seus pacientes não usam, mas que está sempre ali, a postos. Meu coração bate acelerado.
Alma–ele diz–confesso que a esperei com impaciência. Seu caso tem uma certa urgência, não é possível você permanecer assim, desaparecida. Onde você está ? Como passou a noite?
–Doutor Platus, estou estranha. Nunca me senti assim antes. Sinto-me lúcida, mas ao mesmo tempo, ausente. Vejo-me um pouco de fora, por assim dizer, ou talvez demasiado de dentro, não sei ao certo. Dá para entender?
–Sim, Alma, sim, eu acho que compreendo. Deite-se e relaxe. Feche os olhos. Vamos fazer um pouco de retrospecção induzida, como uma hipnose consciente. Há tempos não fazemos isso, mas creio que agora será produtivo. Deixe seu pensamento fluir... para trás. Para aquela sua temporada de férias, naquela fazenda que não era a sua, mas da sua tia em Minas, daqueles primos. Assim...você está passeando no terreiro, agora se encaminha para o paiol. Entra. Sente o cheiro da palha de milho, abundante ali. Tem vontade de deitar-se nela. Agora diga o que vê.
–Vejo as frestas luminosas, entre as tábuas, com os raios de luz fazendo a poeira dançar. Fico vendo os filamentos que aparecem e desaparecem no ar, infinitamente.
–E no que você pensa, Alma?
–Penso justamente na alma, que aquilo parece a minha alma...não sei bem porquê.
–E depois, Alma, o que você vê?
–Uma sombra, doutor. Vejo uma sombra que corta os raios de luz, lá fora. A porta geme, se abrindo. Um vulto... Não enxergo bem, uma silhueta alta. Meu Deus! Ele tranca a porta com a tramela, atrás de si!
–E então, Alma, o que aconteceu?
–Ele fala. A voz é muito grossa. Ele fala!
–O que ele fala, Alma?
–Tenho vergonha, tenho vergonha! Não posso dizer o que ele fala!
–Conte, Alma, conte tudo. Nada tema. O que dizia ele?
–Ele diz: “Priminha, tô de olho em ocê, sei que ocê ainda tá seladinha, depois daquele casamentinho de mentira... Por isso vou entrá no seu buraquinho de trás, que é procê saber o que é um home, mesmo, e depois ainda podê casar de verdade.”
–Alma! O que aconteceu então?
– Ai, doutor Platus! Ai! Dói demais. Estou sendo aberta, como um fruto! Estou sendo rasgada ao meio. Socorro! Doutor Platus, ajude-me! Ele está dentro de mim, inteiro, ai! Agora se movimenta, rápido. Quer virar-me do avesso. Ai, já não sinto mais dor. Agora sinto prazer. Entrego-me inteira. Ele ofega e sussurra em minha orelha. Diz que vai explodir dentro de mim, Ai doutor, quero morrer de... prazer!
–Sim, Alma. É assim, veja, é assim – disse o doutor Platus, tirando a minha calcinha. Assim... Alma, não dói.. Você não quer na frente? Na frente não dói...Não? Está bem, atrás... como ele fez, não é ? Veja, é preciso estar lubrificado. Veja como eu entro em você... Estamos juntos. Nada tema.
Sim, doutor Platus, sim, o senhor pode fazer. Já não dói mais. Pode fazer, doutor Platus, pode fazer...
Ele ficou longamente entrando e saindo de dentro de mim. Retirava a sua lança, e levantando-me as pernas sobre os seus ombros, olhava-me toda aberta e introduzia de novo. Afinal explodiu seu sêmen dentro de mim, que escorreu numa golfada sobre aquele divã. Ele permaneceu um longo momento olhando-me assim aberta , com as palmas de suas mãos nas minhas nádegas, abrindo-as, expondo-me, devassada, avaliando a sua obra. Sob esse olhar, igualmente invasor, percebi, de relance, um longo fio de prata, que saindo da ponta do seu enorme membro congestionado e rubro, ainda me unia a ele, como um insólito cordão umbilical. Então, tive um violento orgasmo. Orgasmos múltiplos, como um labirinto, sacudiram-me entre suas mãos, que me mantinham assim para observar minhas contrações estertóricas. Então, um súbito relaxamento, quase como um desmaio, ou uma doce fração da morte, me tomou. Permaneci vagando, fora do tempo, nas Ilhas Bem Aventuradas ou nos Elíseos, que sei eu?...
Depois de um longo momento de lassidão, de ambos, o doutor Platus começou a querer balbuciar desculpas, mas isso não me interessava. Queria mesmo é que ele fizesse aquilo novamente. Suas desculpas me decepcionavam.
Saí do seu consultório andando com dificuldade. Aquilo já me acontecera outras vezes na vida. Essa é que é a verdade. Mas, no corredor, amparada ainda pela mão do doutor Platus, dei-me conta de que fora novamente estuprada. Mas, ao mesmo tempo, sentia-me feliz. Percebi que me materializara, por assim dizer.
O doutor Platus demorou a soltar-me a mão e só o fez quando a porta do elevador já se fechava.
Cheguei ao meu estúdio e joguei-me na cama. Mas eu percebera ao entrar, que o seu Ermírio me saudara com alegria e surpresa. Perguntou-me se eu estivera viajando e onde estava a minha mala.
Respondi-lhe que eu viajara sem bagagem, o que o deixou muito espantado. Mas eu não expliquei nada. Só queria disfarçar o meu andar penoso, e chegar logo na minha cama.
Passei uma tarde e uma noite quase normais, apesar da dor. Não foi possível pintar, já que o faço de pé durante muitas horas. Mas escrevi alguma poesia. Eu me sentia centrando-me e corporificando-me cada vez mais. Eu reentrava em meu eixo. Eu necessito do amor corporal. Necessito ser tocada e atingida para poder produzir arte: Pintura, contos e poesia. Uma coisa depende da outra, se alimentam mutuamente. Preciso amar e ser amada. Mas preciso possuir e ser possuída fisicamente, mesmo que seja com violência, ou nada poderei criar nesta vida.
Amar, criar, gozar plenamente, esse é o sentido da vida para mim. Tudo o mais é balela. Tudo o mais é... fútil. Ser penetrada é...essencial, e toca-me o manancial da arte, em mim.
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No dia seguinte recebi um telefonema do doutor Platus. Ele falava agora pessoalmente, não mandava a dona Aglaia passar recado. Queria ver-me, estava levemente ofegante. Pensei: “o doutor agora considera-me sua, e vai declarar-se logo”. Dito e feito. Ainda pelo telefone, ele disse:
–Alma, preciso vê-la imediatamente. Venha aqui, ou deixe-me ir aí. Alma, eu a amo. Quero explicar-me com você. Quero dizer-lhe porque fiz aquilo. Você está bem? Não está magoada? Você entendeu, Alma? Não quero perdê-la. Posso vê-la, Alma, logo?
—Sim, Doutor Platus—eu respondi.–Está tudo bem, eu compreendi. O senhor não me magoou. O quê? Não quer que eu o chame mais doutor... Porquê? Bem, está bem... Platus. É esquisito chamá-lo assim. Não sinto essa intimidade, por incrível que pareça, me desculpe. O que ocorreu... Bem doutor, o senhor se aproveitou oportunamente de mim, e me salvou. Sou-lhe grata. Não, não estou machucada, nem ofendida. Muito menos humilhada. Eu sabia, doutor Platus, que isso aconteceria, só não sabia que seria assim... por trás. Está envergonhado? Eu não. O senhor quer vir aqui? Sim... pode vir, mas não hoje...daqui a dois dias. Preciso me recuperar, fisicamente. Não, não... estou apenas dolorida. Meu corpo todo dói. Desaparecer causa muita tensão muscular, e ser estuprada, mais ainda. Não, não estou sendo irônica. O senhor já me conhece, sou sincera e objetiva, acho. Está bem. Sim, outro. Até lá.
No dia seguinte pintei um pouco. Comecei um quadro, mas o esforço de encher uma tela é maior no início. Exige muita tinta e esfregaço de pincel para impregnar a tela. Meu corpo ainda se ressentia. Mas, pelo menos eu me sentia presente e a minha própria matéria se adensava, como as camadas que eu aplicava sobre a tela. Como a vida é misteriosa e bela!.... Quero fruir e conhecer todos os meandros do ser, do existir...em plena consciência.
Quanto às profundezas... eu sei que é um reino ainda maior que o que existe sob as águas dos oceanos. Sabemos muito pouco dessas camadas subjacentes, profundas.
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Dois dias depois, de manhã, lá pelas 10 horas, o telefone tocou. Era o doutor Platus pedindo para visitar-me imediatamente. Aceitei, dei-lhe permissão. Mas não me preparei, nem me arrumei especialmente. Ele anunciou-se na portaria e subiu. Abri-lhe a porta e ele quis logo abraçar-me e beijar-me. Pus-lhe uma barreira, afastando-o com as palmas das mãos no seu peito. Ele então disfarçou, sentou-se numa cadeira de lona que uso para observar os quadros, deu um assobio, depois voltou a olhar-me nos olhos e disse:
–Alma, Quero conversar com você sobre tudo o que aconteceu. Cheguei a uma conclusão: o fenômeno que ocorreu com você foi muito grave. Tive de traze-la do mais profundo recesso do seu labirinto. Você está consciente de que eu também podia me perder ali? Senti-me perto da morte psíquica. Não quero me vangloriar, mas tive que enfrentar a sua sombra... e ela me apareceu assim tão real como estou lhe vendo. E era...o Minotauro!. Depois, tive de abandoná-la, para recuperar minhas próprias forças. Nesse ínterim, meu pai morreu e eu permaneci um tempo de luto, não podia voltar. Mas isso me permitiu maturar meu plano de resgate. Você viu. Eu estava certo. Você precisava reviver aquela experiência traumática, para voltar a adensar a sua matéria. A dor precisava ser revivida, você me entende. Você me perdoa?
—Mas doutor Platus, porquê o senhor se justifica, se foi tudo para o meu bem, e se o senhor me resgatou, como o senhor diz? Aliás, estou disposta a aceitar isso. Não estou me queixando de nada. Sinto-me até bem, novamente. E a dor física também passou. Mas devo lhe dizer, doutor Platus, que o seu amor não é nada platônico...Também não estou convencida de que eu estivesse jamais traumatizada por aquele evento da minha infância. Aquilo, pelo contrário, libertou-me sexualmente muito cedo, se é que eu pudesse estar presa. Não estou convencida de que o meu desaparecimento recente tenha qualquer ligação com aquele evento da minha infância, embora a ação do doutor tenha funcionado muito bem como chamado à matéria, ou ancoramento, como o senhor diz. De qualquer modo, doutor Platus, sou-lhe grata.
–Alma–ele disse– você é desconcertante : trata aquilo que se passou
como uma simples intervenção cirúrgica. Para mim foi um ato de amor! Você entende? Uma expressão espontânea do amor que sinto por você já há muito tempo. Desde que você adentrou o meu consultório pela primeira vez há um ano atrás. Muito tive que me conter, me reprimir. Você pode imaginar.
–Sim, doutor Platus, eu acredito. Eu imagino. Mas se o senhor está me cobrando uma reciprocidade, só posso lhe dizer que sou grata e que preciso da sua amizade. O senhor me penetrou no seu consultório, como expressão de amor, e eu posso concordar com isso. Sei que é assim. Os homens penetram com violência as mulheres como expressão do seu amor. E nosso orgasmo, já foi um dia chamado de “pequena morte”...
Platus permaneceu olhando-me em silêncio, consternado. Minha reação não era o que ele esperava. Como homem, queria, na certa, que eu me declarasse apaixonada e lhe caísse nos braços exclamando: “Platus, meu amor, toma-me, sou tua. Penetra-me mais uma vez, mais mil vezes, faz de mim o que quiseres, para o teu prazer.” Não, não era esse o homem. E o momento também já passara.
Platus percebeu isso. Olhou em volta, parou em frente de uma grande tela, chamada “Orgasmo”. Suspirou, e partiu.
Decidi interromper a minha análise. Ou dá-la por encerrada. Eu me dera alta.
Eu voltara a mim. Não mais esperava Teseu.

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Capítulo terceiro

A Volta de Dioniso


Estou pintando muito e maravilhosamente. Só coloco no aparelho músicas triunfais ou alegres, enquanto me movimento rapidamente, manuseando grandes telas, deslocando-as de um lado para outro, dando bravas pinceladas, com gestos largos. Chego a dar alguns passos de ballet entre as telas, com o pincel na mão, o que é, no mínimo, insólito. Faz-me pensar numa coreografia que nunca vi, sobre uma pintora. Deve haver algum ballet assim. Ou deveria haver.
Quando o trabalho rende, no fim do dia a satisfação é imensa. Fico horas olhando meus próprios quadros em processo. Depois começo a querer uma outra espécie de compensação pelo esforço. Um outro tipo de prazer. Queria ser abraçada e possuída... pelo meu amor. Queria que esse amor, quem quer que fosse ele, me dissesse: “Alma, querida, que maravilha, que beleza o seu trabalho. Que coisas lindas você fez... Venha, vamos para o quarto, deixe-me beijá-la da cabeça aos pés. Você relaxará. Quero enchê-la de prazer com o meu amor. Vou lambê-la como a uma bezerrinha, longamente. Abandone-se, Alma, o seu trabalho terminou por hoje.”
Ah! Como eu vivo sonhando!... Nunca ouvi, propriamente essas palavras. No entanto, fui bastante amada, e desejada. Porquê então nada me satisfaz? Quero o amor total, absoluto. Mas o que será realmente isso? Às vezes me ocorre que eu precisaria ser morta pelo meu amor no auge do meu orgasmo, como naquele filme “Império dos Sentidos”, o rapaz pela sua amante. Mas, eu queria ser penetrada por um arpão de carne tão grande que me rasgasse ao meio. Devo ser doida. Ou uma masoquista. No momento só posso contar com o doutor Platus e sua lança sanguinolenta (isso fez-me dar uma risada). Meu sodomizador junguiano emérito...(dei uma gargalhada maior ainda).
Não importa, estou alegre. Vou encontrar um amante, homem ou mulher, não importa, desde que me ame e que me deseje loucamente. A esse ser, eu me darei até meu sangue escorrer.
E se eu chamar aquela pobre Regina, dos cachorrinhos? Ela poderia , num momento, fazer jus ao seu nome? E ela poderia trazer também os cachorrinhos, que lamberão o que sobrar. Ai, estou ficando escabrosa. Bem, quero experimentar também uma maravilhosa pornografia. Realmente, estou ficando louca.
Estou ficando eufórica. Entusiasmada demais, ou exaltada. Devo procurar o doutor Platus afinal. Talvez eu esteja doente. Dizem que a tal PMD é isso: depressão e euforia se sucedendo rapidamente. Mas não, não sinto que seja esse o meu caso. Serei eu uma histérica? Só quero amar e ser amada.
Preciso de serenidade, e não consigo mais vê-la no meu horizonte, estando solitária. As Ilhas Bem Aventuradas! Preciso atingi-las a bordo do navio do meu herói, resgatada dessa Náxos sem forma, sem contornos, limbo dos navegantes.
Vem, meu amor, não mais como Teseu, que me abandonou nesta ilha, mas como Dioniso, alegria há muito esperada. Vem, leva-me para os Elíseos, onde a felicidade nunca acaba, o orgasmo é infinito e não se assemelha à morte. Vem, Dioniso, meu deus hermafrodita, vem em forma de homem ou mulher, eu estou pronta para amar com infinita alegria!
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Saio uma manhã para andar pelos quarteirões do meu bairro. Preciso fazer exercício. Ando bastante e chego a suar. Volto para casa para me banhar e recomeçar a pintar. Quando reentro na portaria, o seu Ermírio me diz:
– Dona Alma, a sua amiga está aí, esperando a senhora lá em cima. Ela ainda tem a chave, não é? Ela me disse que combinou com a senhora. Fiquei meio sem saber o que fazer, não tive coragem de barrá-la. Ela parece uma boa moça. Fiz bem?
–Sim, sim, seu Ermírio, o senhor fez bem, neste caso. Ela realmente tem as chaves, não as tomei, ela é sempre bem vinda. Obrigada.
Seu Ermírio abriu-me, solícito como sempre, a porta do elevador, e eu mal continha a minha excitação.
Quando toquei a porta do apê, percebi que ela estava aberta. Entrei e tive uma surpresa maior: Vânia descera o seu vestido abaixo dos seios, que expunha nus, linda como sempre, em frente ao meu cavalete, com uma enorme tela azul como o Mediterrâneo, nele, de fundo. Mas, o mais insólito: ela tinha na mão direita, um enorme falo de silicone, extremamente realista, inclusive nas cores. De sua base pendiam correias de couro. Com os braços abertos ela o brandia levemente, e sorria. A safadinha chegou a exclamar um “Tcham!” gaiato, e seus olhos riam como os lábios.
Caímos numa gargalhada imensa, enquanto nos abraçávamos loucamente.
Dioniso voltara, e com ele a duradoura alegria.

domingo, 20 de janeiro de 2008


Desenho realizado pelo próprio Arthur Evans, da estatueta de faiança por ele descoberta, a "sacerdotisa das serpentes". Alma com sua criatividade e bom humor modificou graficamente a serpente da mão direita da estatueta, tranformando-a num "dildo", ou pênis artificial com correias na base, para uso feminino. Ri muito quando encontrei esse desenho colado no fim do manuscrito da Alma. (Lucia Welt) _________________________________________________
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MAESTRO LIUTAIO (de Alma Welt)



Stradivarius



MAESTRO LIUTAIO

Primeira parte de NARCISO, segunda novela da Trilogia Mítica, de Alma Welt.



Entrei hoje num antiquário, atraída por um violino antigo que vi na vitrine. Está em muito mal estado, mas sua beleza me fascinou imediatamente.
Não sou musicista, nem toco nenhum instrumento, embora tenha estudado balé clássico desde pequena, só parando devido à minha opção pela pintura. Mas sempre tive uma enorme atração por esse instrumento: o violino. Não só pelo seu maravilhoso som, nas mãos de um virtuose, é claro, como por sua forma e delicadeza barroca. Exerce sobre mim um estranho sortilégio, como se eu tivesse algo a ver com ele, com o seu passado, com as suas origens.
Depois de namorá-lo longamente na vitrine, entrei na loja e logo fui recebida pelo antiquário, italiano, Sr. Enzo, homem idoso e solícito que logo perguntou-me se procurava algo especial. Disse-lhe que sim. Que queria saber o preço do violino da vitrine. Ele foi buscá-lo e colocou-o em minhas mãos. Manipulei-o cuidadosamente, ligeiramente condoída de vê-lo tão maltratado, com o tampo superior meio descolado num canto, sem o cavalete, duas chaves e o suporte, sem cordas. Mas suas formas eram belíssimas, e a madeira, com veios maravilhosos, embora o verniz estivesse marcado ou fosco em alguns lugares. Olhei pela frisa, e lá estava:

“ copie de
Antonius Stradivarius Cremonensii
– faciebat anno 1695”

O italiano sorriu vendo a minha atenção a esse detalhe e disse:
–“ Isso é um violino francês, de fábrica, uma cópia de Stradivari, de série. Nada importante. Além disso é um violino de criança, como a senhorita pode ver. Um pouco menor que o violino normal. Mas não deixa de ser um belo instrumento. A senhorita tem bom gosto. A sua madeira é maravilhosa. Mas chegou às minhas mãos nesse estado. Eis aqui o arco. Ainda tem a crina original. Um belo arco, muito bem feito. Aliás, cópia de Stradivari, igualmente.”
Examinei o arco. Olhei cada detalhe cuidadosamente e decidi-me. Disse-lhe:
–Sr. Enzo, fico com ele. Quero-o para enfeite no meu ateliê. Não sou musicista, sou pintora. E acredite-me, lamento não ter esse outro talento, como o grande Ingres, que parece ter sido um razoável violinista. Quanto a mim, sempre quis ter um instrumento desses na mão ou ao alcance do olhar. É quase uma tradição tê-los nos ateliês de pintor, o senhor sabe.
--Claro, senhorita. E em suas belas mãos ele poderá readquirir toda a sua beleza. Vou lhe dar o cartão de um luterista, meu conhecido. Ele o restaurará para a senhorita, se lhe interessar. Acho que vale a pena. A senhorita tem olho clínico. E além disso, quando um instrumento é restaurado, a obra do luterista original se preserva, revive... e ele agradece, lá do seu túmulo, não é mesmo?
Sorri ao sr. Enzo, como apreço por esse comentário. “É o que farei”, pensei, guardando o cartão na bolsa. Vou procurar esse luterista amanhã mesmo.
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Cheguei em casa e logo pendurei-o numa parede do ateliê. Aquela noite, naturalmente, sonhei com algo relacionado com aquele objeto: Eu andava por um belo bosque, europeu pelo aspecto, pois predominavam os pinheiros, e não se ouviam pios de pássaros, a não ser o canto de um cuco, um tanto irritante. De repente deparo-me com um lenhador que acabara de abater uma árvore, um pinus especial, e serrava um determinado pedaço do tronco para carregá-lo consigo, provavelmente. O lenhador, muito concentrado, olhou-me sem parar de trabalhar, enquanto eu lhe perguntava a finalidade daquilo. Ele respondeu:
– Alma, porque me pergunta o que já sabe?. Deste pedaço sairão mil almas de violinos. Por isso, a minha responsabilidade é grande. Sou o último da minha estirpe a saber escolher o lugar certo de onde retirar o material dessas peças. Só eu sei reconhecer, pela vibração especial, a altura certa do tronco, onde cortá-lo. Ainda mais que em cada árvore essa altura é diferente. Para isso bato com o cabo do machado até reconhecer a vibração ideal em minha mão e um determinado som em meu ouvido. Algo que não se pode praticamente ensinar. Sou um seletor de almas.
— Senhor – eu disse – Sempre soube que o segredo da alma é somente o lugar e o ponto de tensão que ela tem entre os tampos. Qualquer madeira saudável, portanto, serviria na mão de um mestre. O senhor não estará mistificando o seu trabalho, para mim, uma leiga?
–– Menina Alma – ele respondeu – A matéria prima é o segredo de tudo nesta vida. Há almas e almas, algumas não estão prontas, suas fibras não estão bem alinhadas e a vibração não se transmitirá adequadamente entre os tampos, superior e inferior. As madeiras muito antigas, transmitem mais harmonicamente a vibração. Mas é verdade que essas estão escasseando muito neste bosque. Além disso, fui escolhido por votação, pelos luteristas todos da região, pois se eu fosse incompetente, estragaria as árvores, para todos. Perdôo a sua ignorância, somente por causa do seu interesse. Já descansei os olhos sobre a sua beleza, agora deixe-me trabalhar.
Fiquei envergonhada e acordei.

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De manhã dediquei-me à minha pintura, mas não parava de olhar, a todo instante a minha aquisição. Afinal, procurei o cartão do luterista na minha bolsa e telefonei. Atendeu uma voz italianada, rude, de velho. Um tanto grosseiro e de maus bofes, afinal, marcou hora para mim no mesmo dia.
Cheguei ao endereço, um prédio no centro da cidade, antigo, com aqueles elevadores de gaiola. Subo e depois de quase perder-me por extensos corredores, bato na porta do Minotauro, onde vi uma placa: Bertellazzi, Maestro Liutaio.
O velho, Bertellazzi, abriu a porta e logo virou-me as costas adentrando novamente a sua oficina, mas como resmungava sem parar, deduzi que era para eu seguí-lo. Violinos e violoncelos por toda parte, contrabaixos e até alguns violões e bandolins. Eu estava fascinada, de estar entrando num ateliê de luterista. Um antigo eco ressoou no meu espírito.De alguma forma eu já conhecia aquilo. Bem, como artista, tenho sempre essa sensação difusa, ( mas sem nunca perder o interesse) de já conhecer o mundo, tudo e todos.
O sr. Bertellazi, continuou o que estava fazendo, mas eu estendi o violino, na sua caixa, para ele. Afinal parou, e abrindo-a deu uma olhada rápida, logo fechou a tampa e empurrando-a para mim, disse, impaciente:
–Senhorita, não me faça perder tempo. Isso é um violino de criança, de fábrica, comum. Tenho mais o que fazer.
–Mas sr. Bertellazi – disse eu – não custará muito, repor as peças que faltam e recolar o tampo. Entregue-o a um seu assistente–disse eu– olhando com o rabo do olho um jovem de avental, que ali perto me olhava com atenção.
O velho então pegou o instrumento, virou-o de costas, na vertical, avaliando, talvez, seu prumo, bateu na madeira com os nós dos dedos (percebi-lhe um quase imperceptível movimento de surpresa no olhar). Então chamou o jovem e disse: – “Gino cuide disto aqui. Mas não perca muito tempo com ele, hem? O filho da moça aqui precisa estudar, afinal o gato parou de miar.” Olhou rapidamente minha mão para conferir uma aliança, que não encontrou.
Sorri meio sem graça, com o humor ranzinza do velho e olhei o jovem com mais atenção. Ai! Senti imediatamente o odor característico de encrenca em minha vida. Era um jovem belíssimo, de grandes olhos negros e cabelo ligeiramente encaracolado à maneira romana antiga. E que nariz! Nada que lembrasse o pai, com seu grande nariz de batata, de velho Gepetto sem doçura. Mas o jovem, alto, com belíssimas mãos de violinista e expressão séria e tímida, olhou-me e recolheu o instrumento das minhas mãos, revirou-o e disse:
– Pode deixar senhorita, isso é serviço rápido. Pode passar depois de amanhã, que estará pronto.
Estendi-lhe a mão, que ele, encabulado, apertou, fazendo-me sentir-lhe os calos das pontas dos dedos fortes. Retirei-me um pouco perturbada pelo seu olhar intenso. O velho deu um último resmungo enquanto eu era acompanhada até a porta pelo filho, atrás de mim. Retirei-me sem mais olhar para trás.
Lembrei-me, diante da porta do elevador, que eu sequer perguntara o preço. Mas não quis voltar. Isso ficaria para depois. Afinal, não poderia ser muito caro.

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Passado um dia, o telefone toca e é Gino, o filho do sr. Bertellazzi:
– Senhorita Alma, o seu violino está pronto. Posso levá-lo aí, se a senhorita quiser, tenho de sair à tarde e aproveitaria para entregá-lo.
– Claro Gino, que gentileza, venha sim. Tomará um café comigo e conhecerá o meu ateliê. A que horas pode vir? (o rapaz, depois de um rápido silêncio, disse):
– Dentro de uma hora, está bem? Ou duas, tenho de passar no banco para o meu pai. Combinado. Até logo.
Continuei pintando mas senti que apenas esperava o jovem deus romano, portador da lira de Apolo (perdoem-me o parnasianismo). Sorri com esses pensamentos e dei pinceladas ao acaso (são sempre as melhores).
Gino chegou depois de anunciar por interfone. Abri-lhe a porta e ele entrou com o violino em sua caixa como numa bandeja. Olhava-me com intensidade e abrindo a caixa retirou o instrumento e seu arco dizendo:
– Senhorita Alma, desculpe a grosseria do meu pai. Ele é assim, e nem sempre tem razão, também. É um violino de criança bastante bom. Na verdade, todo instrumento antigo merece nosso respeito. Foi criado pelas mãos de homens como nós, e que já se foram. Acredito que um pouco da alma desses homens permanece na madeira. A senhorita não acha?
–Acho sim, Gino. Você pegou o ponto. Tenho uma enorme reverência por todo bom trabalho de arte, e esse violino me pareceu um, à primeira vista. Não importa que seja um violino de série, ou de iniciação. Eu vejo, eu sinto nele algo de diferente, embora não saiba dizer o quê. Mas, sente-se, Gino, vou fazer-lhe um café. Mas antes deixe-me examinar o instrumento. Está muito belo. Você fez um grande serviço. Trocou o verniz, além das peças, Gino?
–De jeito nenhum, senhorita. Isso não se faz com um instrumento antigo. O verniz original faz parte do segredo de sua qualidade, do timbre especial, ou pelo menos da sua ressonância macia ou dura, conforme o caso.
Olhei Gino e admirei-lhe a competência, o zelo, e sobretudo, novamente, a sua beleza. Que rapaz! Dirigi-me à cozinha, que no meu ateliê é americana, isto é, uma continuação da minha sala-oficina. Dali podia fazer o café, sentindo pelas costas o olhar de Gino.
Voltei com as xícaras e tomamos o café, olhando-nos nos olhos. Mas ele logo abaixou os seus. Apesar de sua intensidade, era mesmo um rapaz tímido. Eu queria retê-lo mais ali, comigo, e disse-lhe:
– Você aprecia a pintura, Gino?
– Sim, senhorita, mas não entendo a pintura moderna. Entretanto a pintura da senhorita me agrada, mesmo sem entendê-la. Percebe-se que a senhorita maneja bem as cores. Além disso o seu ateliê é muito agradável, acolhedor. Não é como a nossa oficina que tem a cara seca do velho, apesar dos violinos todos por ali. Não é mesmo? (Rimos juntos, esse rapaz era adorável e eu pousei a minha mão sobre a sua, numa gargalhada. Ele parou de rir e baixou os olhos. Fiquei encabulada por um segundo. Estaria eu agindo como uma sem vergonha, oferecida?
Gino levantou-se e disse:–Bem, senhorita, tenho de voltar logo, pois meu pai me espera com os documentos do banco. Gostei muito de conhecê-la e ao seu ateliê.
Paguei o preço que estava numa notinha que ele me estendeu e ao preencher o cheque , disse-lhe:
–Gino, volte, volte mesmo, ou terei de quebrar o violino novamente? Ele sorriu, estendeu-me a enorme mão e encaminhou-se para a porta.
Fiquei só, meio envergonhada das minhas palavras. Senti-me sem compostura. O rapaz tinha um ar tão puro... e eu agi como uma dona de bordel, quase como uma marafona. Ai, que vergonha! Não sou assim, o que deu em mim ? Sou jovem, não preciso caçar ninguém! Por quê o luterista me atraiu tanto? Claro que sei. Ele é belíssimo, e é uma jóia de homem. Puro, meigo, e talvez um tanto primitivo. Tem tudo o que atrai uma mulher como eu. Aliás, eu tenho direito a ele. Porque não? Também sou pura, tenho consciência disso, apesar das minhas paixões, dos meus inúmeros casos na vida, até agora. Sempre fui fiel aos meus sentimentos, e jamais falseei nada, apesar de já te ouvido pelas costas a expressão “Casanova de saias”, que me estarreceu. Mas não me reconheço nisso, sinto-me, na alma, uma eterna adolescente. Na verdade, sinto-me também muito antiga. É uma contradição que não quero aprofundar.
Dirigi-me ao pequeno instrumento para fruí-lo um pouco com o olhar. Ah! por que não estudei violino, quando era criança. Eu não faria o gato miar, como disse o sr. Bertellazzi. De alguma forma eu evitaria isso.
Passei o arco sobre as cordas num suave arpejo. Uma vez só. Ele me pareceu afinado. Olhei novamente a frisa e o selo “Antonius Stradivarius Cemonensii 1695”. Onde estava o “copie de” ? Não era isso que estava escrito na parte superior do selo? Que mistério era esse ? Quis telefonar imediatamente para Gino. Contanto que o velho Bertellazzi não atendesse... Tinha agora um pouco de medo daquele velho. Terei eu a consciência pesada? Mas... se só toquei na mão do donzel! Tive vontade de rir, mas a curiosidade, maior, persistia. O que acontecera com aquela palavra “copie”?
Afinal consegui, a duras penas, falar com Gino. Perguntei-lhe sobre o selo de Stradivarius, e ele hesitou um pouco ao responder:
–Senhorita, não sei, mas acho que aquilo era um pequeno selo sobre o selo. Deve ter caído quando repus a alma. Você sabe, a pinça deve ter tocado o selo, arrancando o papelzinho, deve ser isso. Mas por quê isso a incomoda?
–Não, Gino, não incomoda, ao contrário, veja, se aquela palavra foi adicionada, isso valoriza o meu violino, não vê? Não estava no selo original. Não poderá ser mesmo um Stradivarius? Ele me deu uma sensação forte desde o início, você sabe. Sou muito intuitiva...
–Senhorita Alma, não digo que não. Tudo pode acontecer. Também senti esse violino muito bom. Até toquei-o um pouco e surpreendi-me com sua sonoridade. Além disso, percebe-se que ele é do período barroco, por sua madeira, mais do que por suas formas que são um padrão desde que adquiriram esse desenho, aliás a partir do próprio Stradivari, que modificou ligeiramente o de Amati, seu mestre.. Mas o que quer que eu faça?
–Gino, quero que você venha aqui, e toque para mim, já que você pode fazê-lo. Eu saberei a verdade imediatamente!
–Senhorita, é difícil escapar daqui. O velho me vigia muito. Na verdade, estou farto. Ele me quer só trabalhando, como se a vida não fosse outra coisa. Mas... eu darei um jeito. Darei uma fugida. Afinal, já sou um homem. O velho não pode me tratar mais assim, a senhorita entende...
–Claro, Gino, sei que você conseguirá. Ligue-me da rua quando você tiver conseguido sair. Espero-o ansiosa, quero dizer...

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Gino estava novamente diante de mim, com o violino na mão. Meu coração, contra minha vontade, batia muito forte.
Ele colocou o violino no queixo e com sua enorme mão, cujos dedos pensei que não caberiam no fino braço do instrumento, com o arco tirou um acorde, parou, torceu imperceptivelmente uma cravelha e começou a tocar. Eu estava maravilhada. Como aquele jovem enorme, com aquelas mãos imensas, podia tirar um som tão delicado? De repente eu o vi como um menininho virtuose, tocando para mim, uma rainha. Desculpem-me a fantasia delirante, mas foi o que senti. O menino Mozart tocando em Viena na corte dos Habsburgo. Eu já sentira aquilo! Sei que não posso mais confiar nas minhas sensações. Como artista, elas são maravilhosas, mas não muito confiáveis. Sempre acho que já vivi tudo no passado. Mas agora!... Eu queria abraçar tudo: o jovem, o menino e o seu violino, junto com aquele som portentoso que enchia o meu ateliê e fazia vibrar mais ainda as minhas cores sobre as telas. Explodi em lágrimas. Gino parou de tocar e me olhava também ofegante. Pousou o violino sobre a minha prancheta de desenho, e abraçamo-nos, loucamente, aos beijos. Eu queria renascer. Eu queria Mozart, eu queria Stradivarius!

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Acordei de um leve sono em seus braços na minha cama. O seu largo peito, sem pelos, apenas uma leve penugem no centro, parecia seda sob minha palma. Seus olhos cerrados de grande pestanas negras. Sua boca de deus grego, seu nariz romano. Eu os beijei mais uma vez, e os cantos dos seus lábios curvaram-se ligeiramente num sorriso, delicado para um homem, como o da Monalisa. Coloquei-me novamente sobre ele, e cavalguei-o sem escrúpulos pelo seu leve sono. Eu o senti enorme e profundo dentro de mim e suguei-o como se tivesse direito ao seu sumo, à sua riqueza de jovem puro, viril. Na verdade eu tinha mesmo esse direito. Minha beleza e juventude me legitimavam, apesar de sentir a minha alma muito idosa. Mas ao mesmo tempo, eu rejuvenescia em minha alma, ao fazer isso, e me tornava uma menina, brincando com o jovem Mozart, debaixo do piano. Esse pensamento me fez dar uma gostosa gargalhada que o fez abrir os olhos. Caí sobre o seu peito com a minha boca colada à sua enquanto ordenhava-lhe o membro com a minha vagina, num espantoso e instintivo pompoarismo. Ele explodiu dentro de mim, como música.

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Encontro-me com Gino uma vez por semana. O velho Bertellazzi, o mantém num cortado, e admira-me que Gino consiga sequer sair, ter vida própria. Começo, naturalmente a insuflar o meu jovem amante a se rebelar, e a libertar-se do jugo do velho. Esta jóia rara tem direito à vida, não somente aos violinos alheios. Quero dar-me a ele como um prêmio ou uma compensação pelo seu talento e pureza. E pelo seu velado sofrimento de prisioneiro do ofício.
Quando ele vem ao meu ateliê peço sempre para ele tocar, enquanto debulho-me em lágrimas. Não sou uma grande expert, mas parece-me tocar divinamente. Então, caio-lhe nos braços e o arrasto para o meu leito. Quero dar a ele também todos os meus sumos. Quisera transformar-me em música para o meu amado. Esse menino grande, meu pequeno Mozart encerrado no corpo de um deus grego!

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O telefone toca. Ouço a voz áspera do sr. Bertellazzi:
– Senhorita Alma. Aqui é Bertellazzi. Quero que se afaste do meu filho, está ouvindo? A senhorita o está desencaminhando. Ele tem o seu ofício, os seus deveres. Não pode ficar rolando por aí, está me ouvindo?
Fiquei tremendamente embaraçada, envergonhada. Senti-me como uma prostituta, no mal sentido da palavra (eu, que gosto tanto delas, teoricamente). Só pude gaguejar:
– Sr. Bertellazzi, o senhor está me ofendendo. O sr. não tem esse direito. Sou uma moça direita. Além disso eu amo o seu filho, esteja certo disso. Só quero o seu bem, e ele tem direito à vida e ao amor, o sr. não acha?
– Senhorita, se é assim então case logo com ele e deixe-o trabalhar. Não, não! Somos homens simples, do trabalho, e a senhorita me parece gostar demais da vida e menos do trabalho. Estou certo? Como posso saber se a senhorita é sincera? O menino é simples como eu, e a senhorita é muito sofisticada. Isso não pode dar certo. O menino vai se machucar. Seria melhor esquecer tudo isso e deixá-lo em paz!
–Mas sr. Bertellazzi, eu já disse, nós nos amamos, e isso não tem mais jeito. O sr. deve saber. O sr. deve ter amado a sua esposa, visto que Gino saiu assim tão belo... Separar-nos agora produziria uma dor insuportável em nós dois. Por favor, sr. Bertellazzi, tenha paciência! Não sou uma qualquer, sou uma artista famosa, posso fazer o seu filho feliz... Está me ouvindo?
–Bem, senhorita. Pense bem. Pense muito bem no que está fazendo. Não suportarei ver o menino sofrer. Passe bem!
Fiquei com olho parado muito tempo. Depois uma dor súbita tomou-me o peito. Uma angústia, ai! uma angústia. E explodi em lágrimas, de amor. De amor perdido? Sim, eu o sentia escapar entre os dedos da minha alma, por assim dizer. Achei que não suportaria mais viver sem Gino. Eu, que o via somente uma vez por semana, mas que me dissolvia nele, na cama, em seus braços, e em sua alma jovem, pura.
Eu não poderia perder Mozart. Ele era meu! Eu lutaria.

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Fiquei esperando o próximo telefonema, que sabia que seria de Gino. Dito e feito. Atendi sofregamente, e a sua linda voz grave, disse-me ofegante:
– Alma, meu amor, quero vê-la já. Briguei feio com meu pai. Vou sair de casa. Vou deixar a oficina. Ele está desesperado, mas nada pode fazer. Percebi que ele evitou falar muito mal de você. Isso também me preocupa, pois parece que ele está sofrendo de um jeito diferente dele mesmo. O quê vocês conversaram, Alma? Bem, vou aí, já. Falamos aí. Espere-me.
Dali a 40 minutos que me pareceram uma eternidade chegou Gino. Abraçou-me dizendo:
– Meu amor, meu amor. Eu quero você. Nada vai me separar de você, Alma, eu não agüentaria! Não agora! Você é minha felicidade. Não aceito perdê-la!
– Gino – eu disse, quase sufocada em seus braços – Eu sei, eu sei. Também não aceito perdê-lo, meu amor.
Eu me sentia como uma Camille, a dama das Camélias, mas não estava tuberculosa, nem disposta a renunciar ao meu amor. Não incorporara preconceitos, e estávamos no século XX. É verdade que ele era um luterista, filho do maestro liutaio, e eu uma pintora famosa. Mas as semelhanças com a belle-époque deveriam parar por aí. Mas ai! o meu romantismo, o romantismo da situação era um fato, em nossa alma, e nas nossas circunstâncias. E eu queria morrer de amor e dor... do medo de perdê-lo.

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Levanto-me nua dos braços do meu amado. Ponho um CD no aparelho. Paganini. Caprichos Opus 1, Andante Cantabile, para violino. Fico olhando muito tempo o meu homem, que ressona, nu, em meu leito, belo como Eros sob a luz do lampião de Psiquê. Mas não o queimarei no ombro. Ele não precisará alçar-se, abrindo as grandes asas. Não me agarrarei ao seu pé, e não cairei ao solo. Não descerei ao Hades. Recuso-me. Se possível.
Mas ai!, todo amor, quando grande, não segue sempre este mesmo roteiro, esta mesma trajetória ascendente e descendente, em ciclos?
Comovo-me com a nossa beleza e nossa dor e sei que a minha vida é excepcional em sua intensidade. Foi-me dado esse doloroso privilégio, como artista, de viver tudo e todos os amores... para terminar sempre sozinha, no final. Mas não é esse mesmo o potencial e o destino de toda a humanidade? Volto ao meu amado e aninho-me no seu peito, envolvida pelas ondas do violino mágico de Paganini, nos braços do jovem Mozart, violinista mais antigo, sem o toque maldito do italiano. Não quero a dor, não quero a tragédia. Quero o amor e a Alegria que colhe as espigas de ouro da vida, com sua eterna dança da colheita. Quero Beethoven da sexta sinfonia e do coral da nona. Alegria, alegria, eu me coloco entre as suas asas, leva-me ao Olimpo, Alegria!

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Gino me ligou para contar-me que seu pai está muito doente:
–O velho decaiu subitamente e olha-me com um ar de preocupação, se não de censura. Agarra-se a mim e pede-me que não abandone nunca a oficina. Pede-me que tenha filhos e ensine o ofício a eles. Creio que o velho vai morrer. Ele quer falar com você, Alma. Quer que a traga até junto do seu leito para falar-lhe em particular. Não sei o que ele quer. Receio que... Mas não importa, vou buscá-la e levá-la até a nossa casa, está bem?
–Certamente, Gino. Estou pronta para falar novamente com ele, eu já esperava algo assim . Mas nada tema. Nada que ele possa dizer vai separar-nos, está bem? E ele também não vai morrer, espero. Ele deve estar fazendo um pouco de chantagem emocional, você sabe, os velhos são assim...

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Chegamos, afinal, juntos, a uma grande casa velha, no bairro do Bexiga, um sobrado um tanto escuro, decorado de maneira carregada, como o fazem os italianos de província, num estilo demodée. Na verdade, com objetos verdadeiramente antigos, passados de pai para filhos e trazidos desde a Itália. Principalmente os quadros e pequenos objetos. Aquilo causou-me uma estranha sensação, como se estivesse entrando num filme de Visconti. Subimos a escada forrada de passadeira e logo entramos num grande quarto, penumbroso, sobrecarregado, onde, num grande leito de madeira, de cabeceira entalhada, estava deitado o velho Bertellazzi. Levei um susto ao ver que o velho estava realmente mal, a julgar por seu aspecto, por sua cor . Tinha envelhecido muito, tão rápido, e já se viam os ossos do crânio, sob suas órbitas encovadas.
–Sr. Bertellazzi, o sr. está me ouvindo? Sou eu, Alma. O sr. está acordado? Eu vim vê-lo... e ouvi-lo, senhor.
–Alma– ele sussurrou.– Que bom que você veio. Tive um sonho, e a Virgem me disse que posso entregar meu filho a você. Ela disse que você é pura, e não machucará o menino. Queria dizer-lhe isso, somente. Agora está tudo bem . Quero que sejam felizes. Cuide do Gino. E você, Gino, cuide dela. A oficina... não a deixem. Tenham filhos e ensinem-lhes a nossa arte. Somente lhes peço isso. Não pode haver felicidade, se um homem abandona o seu ofício. Tudo perde o sentido. Lembrem-se...
O velho abriu a boca, sem ar, e estertorou num longo gemido... fechou os olhos e parou. Estava morto.
O espaço, em torno encheu-se de gemidos e do som de soluços. Alguns desses sons partiam de mim mesma, eu percebi.

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Narciso
(Segunda parte da Trilogia Narciso (continuação de "Maestro Liutaio", de Alma Welt )



Gino veio morar comigo, em meu ateliê. Está arrasado com a morte do pai. A depressão o pegou em cheio. Quase desmaiou no velório, e teve que ser retirado do recinto, meio carregado, por parentes e por mim. Depois, o seu desespero tinha o timbre do sentimento de culpa, e temi, por isso, que afetasse a nossa relação. Quanto a mim, não me sentia culpada. O velho me absolveu com suas palavras no leito de morte. Por isso, apesar de tudo, o meu coração não estava pesado a não ser pela dor do meu amado.

Eu sabia que Gino recuperaria a serenidade, talvez a alegria. Esses italianos têm grande dependência da figura paterna. Padre Patrone. Bem, na verdade, a humanidade, de um modo geral, é assim. Quanta à Mamma, nem se fala. Mas, o velho era viuvo há muitos anos. A mãe de Gino morreu quando ele era ainda adolescente. Na verdade, esse fato paralisou o seu crescimento emocional, ali naquela data fatídica. Gino permaneceu um garoto em sua alma, o que lhe confere esse encanto, essa pureza, que me seduziu. Mas sei que essa contradição é perigosa. Freqüentemente causa graves desequilíbrios na personalidade, como alcoolismo, droga-adição ou neurose. Bem, isso é o que se sabe, atualmente. Mas Gino, não. Permanece belo como uma criança divina, e eu quereria, às vezes, recolhê-lo ao meu útero, esse garoto enorme e doce, capaz de tocar belamente um instrumento que ele é capaz de construir.

Aliás, devo reconhecer que a formação de ofício, neste sistema de pai para filho, costuma dar certo, e é a base da integridade e do caráter forte dos camponeses e operários. Filho de camponês, camponês, de artesão, artesão. Há uma certa beleza nisso. Eu jamais quereria tirar o Gino de sua profissão artesanal. Não fosse eu como pintora, uma artesã, também .

Gino afinal reabriu a oficina. Os outros, empregados já estavam impacientes, necessitados de trabalhar. Quando Gino assumiu, incentivado por mim, fê-lo com a dignidade de patrão, consciente, embora nada autoritário. Sua doçura não permitiria essa postura. E eu mais o admirava por isso.

Eu observava o meu amor, que crescia diante dos meus olhos, como homem, abrindo suas asas.

Eu ia quase diariamente buscá-lo, ao final do expediente, um pouco antes do término, só para observá-lo um pouco, finalizando o seu trabalho do dia. Que habilidade! Que conhecimento da técnica e dos materiais! Então, ele pegava o melhor instrumento de cliente, e tocava um pouco para mim. Às vezes, fazia escalas de Paganini, complicadíssimas, para me mostrar o seu virtuosismo. A sala e o prédio inteiro se enchiam daquele som miraculoso, e parecia que um silencio reverente se instalava simultaneamente àquele som, naquele agitado prédio comercial, pouco antes do final da jornada. Eu, então o abraçava e beijava muito.

Depois, saíamos de mãos dadas, cumprimentados, me parecia, pelos funcionários e empregados de escritório, ascensoristas, etc. Eu vivia uma linda experiência, e era feliz...

Em casa, eu lhe preparava o jantar, e punha sempre um candelabro no centro da mesa, com velas. Eu fazia questão dessas velas acesas, à mesa, no cotidiano. Meu amor jamais deveria perder o seu romantismo. Todos os dias seriam de celebração.

Eu o levava cedo para a cama, para dar-me a ele... e toma-lo também, durante horas e horas, até adormecermos, nus, nos braços um do outro, freqüentemente com o seu membro dentro de mim, que escorregava lentamente, e se retirava, já que eu não podia retê-lo para sempre.

Não podia retê-lo... ai de mim, esse pensamento crescia , às vezes, na minha mente e me perturbava. Eu lutava contra esse sentimento, essa preocupação tão perigosa, tão inimiga do Tao, a que me dispusera a partir de um certo dia da minha vida. “Não me preocupar. Eis a providência que preside o meu destino!” Dizia o mestre Nietzsche.

Mas o talento crescente de Gino para tocar o violino, não somente para construí-lo ou concertá-lo, começou a fazer a sua exigência. Chegou, quase que naturalmente, o dia da sua estréia como concertista. Um casal amigo nosso, tomara a empreitada e o estava empresariando.Conseguiram-lhe um bom teatro, com excelente acústica; reliese, entrevistas, e o apoio de um maestro famoso, que se impressionou com o talento de Gino, vendo nele uma futura estrela internacional. Quis tratá-lo como sua descoberta, agindo de maneira um pouco invasiva e dominadora, o que me causou ciúme e revolta. Parecia que ele me queria roubar Gino, e nosso antagonismo se instalou. Como eu não era musicista, tratava-me como uma intrusa, “uma estranha no ninho”, o que me deixava indignada. Um dia, quase me esfregou uma partitura na cara, e eu, que tenho pouco a presença do Animus, explodi em lágrimas e somente consegui protestar. Eu não sabia ler uma partitura, mas o Gino precisava de mim, mais do que para simplesmente virar-lhe as páginas na estante. Aquilo não era justo. Sou uma artista! E sou o seu amor, a sua amada, a sua Musa! Isso ninguém me tiraria. Por um momento conheci o ódio em minha vida. Eu soube, por um segundo, o que é a vontade de matar! Aquele maestro, aquele tirano! Perto dele o falecido Bertellazzi era um anjo, e eu pedi, em pensamento, a sua proteção.

Afinal, chegou o dia da estréia. Gino estava belíssimo no fraque que eu lhe aluguei. Permaneci na coxia, vestida com um longo, com os olhos fixos no meu amor. Eu sabia que seria uma estréia consagratória. Quando fez-se silêncio, um segundo antes dele tocar as cordas com o arco, ele dirigiu-me um olhar profundo, que até o público deve ter percebido. Meu coração iluminou-se e ficou pronto para receber plenamente a música do meu amado. Ele tocava o famoso e indefectível concerto em Ré Maior, para violino e orquestra, de Tchaicovsky. Tocou como um deus da música. Eu estava flutuando, e então, subitamente, levantei-me da cadeira em que estava, na coxia, e como uma sonâmbula, caminhei, hipnotizada, para o palco em direção àquele violino mágico. Parei a três passos de Gino, que tocava sem olhar para nada, concentrado. A platéia fez um Oh! uníssono. Houve alguns risos. Em seguida, uma explosão de palmas em cena aberta, um segundo antes dele dar os últimos acordes. Ele olhou-me surpreso e abraçamo-nos. O teatro veio abaixo.

Saímos carregados de flores. Eu recebera uma grande corbeille em pleno palco, sob o olhar de censura do maestro. Fiz uma reverência ao público, como se o espetáculo tivesse sido meu também, o que causou mais risos. Saímos do palco ovacionados. O público queria o nosso retorno, um biz, sei lá. Eu quis me retrair, mas Gino puxou-me pela mão e arrastou-me ao palco, novamente, para a continuação dos aplausos. Mas eu perdera a expontaneidade, envergonhada, e fiz um movimento rápido de coluna, e fugi daquele palco, produzindo mais gargalhadas e mais aplausos, eu percebi.

No dia seguinte, saíram manchetes em revistas, registrando a “nossa” performance. Dividi com Gino as entrevistas. Os jornalistas tratavam-me como a musa de Gino, e eu estava dividida em meus sentimentos. Não me perguntavam sobre a minha arte. Não me entrevistavam senão como mulher de Gino, e sua Musa. Não queriam nem ouvir falar de minha pintura, mas elogiavam muito a minha beleza... e a minha atitude naïve, ou expontânea, que caíra no gosto do público. Eu quis recolher-me logo à minha reserva, de artista de uma outra área, menos festejada neste nosso país. Mas era tarde. Era fotografada a todo instante. Saí na capa de revistas, como a musa da temporada, e não tardou uma famosa revista masculina fazer-me a proposta de posar para o que eles chamavam de “ensaio fotográfico artístico”. Uma oferta muito alta, mas que desconsiderei. Comecei a ficar perturbada. Aquilo tudo parecia me desviar de um caminho que, afinal, eu havia, como pintora, traçado para mim.

O editor encarregado da matéria, chegou a mostrar-me o cabeçalho do ensaio, que daria o teor do texto: “Por trás de um grande violino, há sempre uma bela mulher.”

A rigor, eu não poderia ficar ofendida com isso tudo. Era até um tanto lisonjeiro, por um lado. Mas eu sabia que era perigoso e poderia destruir a seriedade da minha carreira. Meu marchand estava indignado, com essa perspectiva... e preocupado. Quanto a Gino, mantinha aquela candura, e o seu ar um tanto vago, de menino sagrado. Na verdade, aquilo tudo podia também prejudicar o início de sua carreira, colocando-a sob suspeição, ou desviando a atenção do real talento que ele tinha.

Então resolvi retrair-me e não mais aceitar entrevistas ou reportagens desse teor. Mas eu já estava na capa de algumas revistas e tive que fugir de São Paulo, refugiando-me numa fazenda, com Gino, que começava a ficar perturbado. Ele precisava estar no centro do movimento musical, não poderia ausentar-se. O maestro invectivava contra mim ao telefone interurbano, dizendo que eu estava raptando Gino. Queria que ele voltasse imediatamente, que ele precisava ensaiar um próximo concerto, que havia toda uma expectativa, e que a carreira de Gino começara a decolar, e ele não podia desperdiçar isso, desviando-se de sua “meta”, “perdido nesse amorzinho aí!” Eu ficava indignada, desse maestro malbaratar assim o nosso amor. Mas eu não queria perder a serenidade. Meditei bastante e disse a Gino:

–Meu amor, você deve voltar a São Paulo, você não acha? Realmente não é um bom momento para você ausentar-se. É muito cedo para umas férias, na sua carreira nascente. Volte lá, querido, enfrente aquela fera. Mostre todo o seu talento, que você se imporá ao mundo. Eu preciso ficar por aqui...um tempo. Sinto-me em perigo lá, em São Paulo, com aqueles jornalistas, com aquelas revistas e toda aquela tentação. Nua, só para o meu amado, não é?

Ele sorriu, abraçou-me, e concordou em partir.

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Fiquei três semanas vagando naquela fazenda. Comecei a escrever poesia de cordel, e surgiu , inusitadamente, uma versão do mito de Narciso, em versão sertaneja. No meu cordel a ninfa Eco, que tanto corria atrás dele, se chamava Dadá, nome balbuciante, que insinuava repetição. Pensei no destino da pobre ninfa eco sertaneja. Por necessidade de rima e métrica, eu sugerira a sua petrificação, com uma única palavra: aquietou. Mal sabia eu, também, que escrevera algo premonitório, um aviso que eu recebera das musas do Sertão, que passaram a me visitar. Essa nova fase da minha criatividade, me compensava o sentimento de solidão que eu poderia sentir com a ausência de Gino. Escrevia além de cordéis, cartas apaixonadas a Gino, que agora, mal tinha tempo para responde-las. As suas cartas foram rareando até que cessaram. Eu evitava telefonar muito para não dispersá-lo de seus estudos, de sua concentração. Mas, o peito começou a doer. Juntei minhas coisas. Coloquei meus cordéis por cima das roupas na mala e toquei para São Paulo.

O que eu não esperava, acontecera. Gino estava envolvido com uma violoncelista da orquestra. A afinidade musical falara mais alto. Além disso ela era bela, encantadora. Senti uma punhalada no peito.

Eu cambaleava no ateliê, de dor. Eu repetia: Gino...Gino. Ele voltou para sua casa, no Bexiga, fechada desde a morte do pai. Ali ele recebia a cellista, e tinham suas noites de amor. Eu queria morrer. Ele me procurava também e estava dividido, queria deitar-se comigo, igualmente, e eu permitia, claro, e me esmerava, para reconquistá-lo. Mas acabava gritando, contra a minha vontade, esmurrando-lhe o peito. Tudo aquilo que eu odiava ver nas outras , ou no cinema, eu estava fazendo. Cenas de ciúmes, baixarias. Uma tarde, enquanto ele estava quase ejaculando dentro de mim, retirei-o de dentro, e ele explodiu no ar como um chafariz branco, atingindo-me no rosto. Limpei-me na penugem do seu peito e afastei-me. Ele ficou envergonhado, se não frustrado. Disse:

–Alma, querida, o que é isso? Você nunca se furtou a recolher-me dentro de si. Eu a amo, Alma. Compreenda, eu estou dividido, mas, o que é seu ninguém lhe tirará!

–Não quero você pela metade. É tudo ou nada. Você entende, homem?!

–Alma, você nunca foi assim. Você não é uma burguesa. Você sempre foi tão livre. Porque isso agora? É só uma fase! Tenha paciência, isso passará.

—Gino (dei um soluço, eu perdera afinal o controle)– você está me matando. Se você não deixar aquela mulher, eu vou lá e a encaixotarei naquele celo, e a mandarei para o oficina do Gino, o “maestrino liutaio”, para diagnóstico do mau som. E do mau cheiro! (Eu estava louca, falava absurdos).

Gino, perplexo, consternado, calou-se e ficou ali deitado encolhido na cama, nu, em silêncio. Retirei um espelho da parede e coloquei-o deitado ao lado da cama, no ponto onde ele olhava, fixamente, para o chão.

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Nossa relação se deteriora. Eu sentia meu peito corroer-se por dentro. Eu tinha que transformá-lo em pedra, ou ele se desfaria em cinzas. Eu disse:

–Gino. Vá embora de uma vez e não volte. Não posso mais viver assim. Eu o amo demais para dividi-lo com aquele seu espelho feminino. Vá para ela, transformem-se numa flor e seu reflexo. Mas saia da minha vida. Eu tenho que criar, eu tenho que pintar. Não serei a sua vítima. Recuso-me.

Gino, tristemente, recolheu suas últimas roupas numa mala, com um brilho molhado nos olhos. Dirigiu-se à porta. Uma lágrima, afinal, correu em seu rosto.

Corri em sua direção, abracei-o fortemente, soluçando, os dois. Mas, de repente, desvencilhei-me dos seus braços, empurrei-o para fora e bati a porta com as minhas costas.

Eu me transformara, afinal, numa pedra. Toda a dor imediatamente cessou.



FIM


28/10/2002

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O Violino de Mozart
(Terceira e última parte da novela Narciso, de Alma Welt)


Gino prosseguiu triunfante em sua carreira de solista. O seu caso com a violoncelista não durou muito. Mas isso já não me dizia respeito. Eu acompanhava de longe a sua carreira. Por assim dizer, eu captava os ecos, não os emitia. Eu me retomara. Lentamente recuperei-me e voltei a ser a Alma que sempre fui. Alegre. Feliz mesmo. Estava pronta pra outra. O que estou dizendo?. Não, paixão nunca mais. É doloroso demais, no final. É “o Inferno, em vida.” Queria o amor, mas não a paixão. Eu já me conhecia, e sabia da minha vulnerabilidade ao outro, à presença apaixonante do outro. Porque sou assim? Porque me entrego tanto ao ser amado? Porque os amo tanto, a esses homens e mulheres que me tocam as cordas sensíveis, do meu instrumento amoroso? Esses virtuoses, freqüentemente malditos, que fazem soar o violino da minha alma, de maneira celestial, ou diabólica. Não quero isso. Como defender-me... de mim mesma? Não há muito a fazer. Sou um marionete dos deuses, e eles “gostam de fazer sofrer os seus amados”. Não é isso que diziam os antigos?
Estou pintando uma enorme tela, onde refletem-se os últimos acontecimentos da minha alma, numa superfície líqüida azulada, como signos simplificados, ilegíveis para os leigos, ou, pelo menos para os que nunca foram vítimas da paixão.
Meus amigos me procuram, alegres, e saúdam meu reviver. Festejam a volta da alegria ao meu atelier, e fazem comovedoras demonstrações de carinho. Trazem-me flores, pequenos presentes. Alguns velhos amigos cortejam-me de maneira perigosa. Ainda assim posso contar com a sua amizade, bastando que os mantenha na linha, à distancia segura.
Quanto às amigas, bem... na verdade, a mesma coisa. Pelo menos num caso. Vânia tinha um tom levemente ambíguo na sua amizade, e lisonjeava-me demais. Além disso, era excessivamente carinhosa, fisicamente. Mas eu não me importava. Era uma bela moça, e ela me distraía. Sua presença me era agradável, e isso é o termômetro da amizade para mim.
Mas, um dia , Vânia chegou no meu ateliê aos prantos. Jogou-se em meu sofá, e soluçando, disse:
–Alma, Alma!... Não posso mais. Eu não agüento mais. Eu preciso desabafar. Tenho de tirar isso para fora do meu peito, trancado há tanto tempo. (Parou... levantou-se com o rosto todo molhado, os lábios trêmulos, e continuou):
–Alma, eu a amo. Eu a amo. Não posso mais!
Surpresa, eu indaguei:
–Quem você ama, Vãnia? O que você quer dizer?
– Você, Alma, você! Não vê? Não percebe? Eu a amo há muito tempo!
“Ai, meu Deus, aqui vou eu, novamente”, pensei...
–Vânia, Vãnia, você deve estar confundindo as coisas. Nossa profunda amizade, nossas afinidades, não é?
–Não, Alma. Pare de falar assim. Não menospreze o meu amor. ( Ela caiu-me aos pés, dramaticamente, abraçando-me as pernas. Eu estava trêmula de emoção. O amor alheio, quando intenso, me coopta, me seduz. Ergui-a pelos ombros, e a abracei. Ela soluçava forte em meu ombro, e eu então peguei-lhe a mão e a conduzi até o meu quarto. Pus-me em frente ao leito e desnudei-me em sua frente, deixando a roupa cair. Estendi-lhe os braços. Ela correu três passos e atirou-se sobre mim, derrubando-me na cama. Deixei-a fazer o que quis. Ela parecia querer devorar-me, saciar-se. Confesso que meu prazer atingiu um pico nunca imaginado, nem com homens. Nem mesmo com Gino. Larguei-me, passiva, para que essa louquinha pastasse sobre mim . Ela me lambia sofregamente, todinha, como numa fome, numa sede de anos, de séculos. Fiquei com o corpo todo molhado de sua saliva, dos pés à cabeça. Essa foi uma das sensações . Ela deteve-se, afinal, lá em baixo, e parecia querer entrar inteira em minha vagina. Lambendo-me, chupando-me, beijando e mordiscando meu clitóris, com sofreguidão. Tive os famosos orgasmos múltiplos, como nunca tive igual com homens. Abandonei-me até mesmo quando ela enfiou-me os dedos, forçando, até que conseguiu enfiar o punho todo em mim Retorci-me em volta do seu braço, enquanto ela abria a mão dentro de mim, e a remexia, com um barulho de caverna aquosa. Desmaiei.
Acordei com Vânia ao meu lado, de bruços. Admirei-lhe a bundinha perfeita, redonda, e a penugem dourada que a recobria à luz do sol que entrava pela janela. Sua vulva, como uma conchinha, insinuava-se por trás, rosada. Aquilo era uma promessa de prazer. Eu não precisaria mais do amor de um homem. Eu também me transformaria em narciso. Um narciso de saias. Tiraria um saudável proveito lúdico do amor sáfico, que prometia surpresas ainda mais prazerosas, embora eu já o conhecesse bem, há muito tempo...
Ah! Como eu me iludia, mais uma vez! Logo ao acordar, Vânia insinuou o timbre possesivo do seu amor. Começou por botar-me um olhar de proprietária, e disse:
– Alma, você agora me pertence. Quem se aproximar demais, ou quiser tirá-la de mim, eu mato. Eu mato. Ouviu bem?
Arrepiei-me toda e suspirei. Lembrei-me do meu doce Gino, quase feminino em sua doçura. Esta pequena virago, me saíra pior que a encomenda. Eu estava enrascada. Mas ela não sabia que esta Alma é livre. Que ninguém pode domá-la ou apossar-se dela. Só o meu próprio amor pode dominar-me. Só a minha própria paixão pode aprisionar-me. Ainda assim , temporariamente.
Como disse, não tenho um Animus forte. Sou uma Anima-possuída, no dizer de Jung. Ainda assim, em ocasiões como essa, reuno as minhas forças e reajo, com uma leoa. Talvez, com a excessiva ênfase dos fracos.
–Alto lá, Vânia! Ninguém me doma não. Eu me entreguei só no aqui e agora. Mas você não é minha dona! Se você insistir nesse tom, dou-lhe um “chega pra lá”!
Vânia imediatamente encolheu-se, caiu de joelho, nua, e andando assim de joelhos, meio grotescamente, veio abraçar-me as pernas. Com a cabeça colada às minhas coxas, ficou uns segundos, assim, em silêncio. Depois disse:
–Perdoe-me, meu amor, perdoe-me. Eu me excedi. É que você me deixa louca, Alma. Estou louca de amor e desejo por você. Há muito tempo sinto isso. Quando você estava com Gino eu me masturbava pensando em você. E pensar nele possuindo você, só não me matava porque eu me imaginava no lugar dele. Eu me projetava na imagem daquele belo gigante tímido, e só assim eu conseguia conviver um pouco com vocês. Agora que ele se foi, eu sabia que chegara a minha vez de tê-la inteira, minha deusa. Perdoe-me. Prometa que me perdoa e que compreenda estes meus sentimentos. Você é linda demais. Você deixa as pessoas loucas por você. Você não sabia? Não sou apenas eu entre as mulheres, e entre os seus amigos. Por isso tenho medo, e queria cercá-la com o meu amor. Agora que a tive, nessa noite maravilhosa, não posso imaginar perdê-la, Alma. Você entende?
–Vânia, calma. Você não vai perder-me. Sabendo usar não vai faltar ( como pude dizer uma vulgaridade como essa? Tive vontade de rir )–Mas não avance demais. Tome tento, menina. Eu não tenho dono ou dona. Nunca terei. Vá devagar. Pegue leve, como se diz.
Vãnia afinal acalmou-se, e passamos um dia agradável. É verdade que ela queria tocar-me o tempo todo, e eu temi que ela se tornasse meio “grudenta”. Ao pensar nisso, descobri a diferença do verdadeiro amor, e mesmo, da paixão. Apaixonada, eu jamais quereria sair dos braços do meu amor. Eu o quereria dentro de mim , sob a minha pele, ou então entrar dentro dele. Se eu sentia algum incomodo com a sofreguidão física da minha amiga, era porque...
Bem, deixemos fluir. Lembrei-me do Tao. Se eu não lembrar dele, vou afligir-me, irritar-me, ou ainda, fragilisar-me. Pior: me sentirei culpada de não corresponder à paixão de Vânia, seu sedento amor.

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Passei a ser vista em sua companhia. E novamente começou o disse me disse. Principalmente porque Vânia fazia questão de dar-me a mão a toda hora e abraçar-me em público. Como ela era bela e feminina, isso enternecia os homens, ou os excitava, mas desnorteava as mulheres e as irritava. Percebendo isso, comecei a entrar no jogo e a brincar de apaixonada também, em público. Que jogo perigoso! Isso era jogar mais lenha na fogueira da Vaidade, quero dizer, da Vânia.
Um dia, porém, veio a notícia. Gino voltara do estrangeiro. Consagrado, um grande virtuose. Gravara CDs na Europa e nos Estados Unidos. Recebera um violino Amati, da Comunidade Musical Italiana. Era cortejado por uma legião de fãs. Espantei-me de vê-lo tão bem , tão belo, na televisão, ainda com aquele ligeiro ar de garoto. É verdade que ele estava mais senhor de si. Sua experiência internacional o tinha feito desabrochar. Era um homem pleno, mas... Percebi-me em lágrimas diante da televisão. Ainda bem que Vânia não estava ali, nessa hora. Ela teria quebrado o televisor, ou me atacado de alguma forma. Ela que não ousasse nunca fazê-lo. Eu a tocaria para fora, tenho certeza.
Dali a pouco chegou ela, trêmula. Olhava-me fixamente, apavorada. Disfarçou, mas eu percebi que ela já sabia que Gino voltara, e que
procurava esconder esse fato que gritava dentro dela, como dentro de mim. Mas no transcorrer da noite, ela não agüentou, e disse afinal:
– Alma, Gino voltou. Se ele vier aqui, barrar-lhe-ei a passagem. Alma, juro-lhe, eu porei fogo às minhas roupas e me atirarei sobre ele, antes mesmo dele transpor essa porta.
–O que é isso, Vânia ?–eu disse– Deixe de ser dramática. Pare com isso. Pegue leve, eu sempre lhe digo. Não gosto disso. Não suporto a tragédia. Só gosto delas nos meus cordéis, como você já viu. Vamos, sossegue.
–Está bem, Alma, mas você me ama? Me diga mais uma vez, Alma. Você me ama?
–Sim, Vânia, sim, eu a amo, querida. Vamos, o que é isso?–abracei-a enquanto ela tremia de emoção e medo. Temi que ela estivesse ficando doente... de paixão. Era isso! Ela estava doente.

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Recebi, afinal, um telefonema de Gino. Queria ver-me, imediatamente. Ia apresentar-se no Municipal. Precisava ver-me para poder tocar, ele disse, numa leve chantagem, que me comoveu. Fui ao seu encontro. Vânia não poderia saber. Tive que driblar a sua vigilância. Não queria atormentá-la mais.
Diante de Gino, numa cafeteria do centro da cidade, freqüentada pelos músicos de orquestra, fiquei corada de emoção, como uma adolescente, e ele, enorme, abraçou-me de um modo que me abarcou toda. Senti o seu cheiro doce, de homem, e vi que nada podia comparar-se àquilo. Me senti, por um segundo, pequenina e com vontade de chorar. Aquele homem me tivera, me conhecia. E eu...o conhecia como a um menino que tivesse saído de dentro de mim. Explodi, afinal, em lágrimas. “Meu homem ( eu pensava ) leva-me contigo, serei a tua escrava. Toma-me em teus braços e carrega-me para o teu teatro, para o teu violino e depois para o teu leito. Enche-me do teu branco amor. Planta-me um filho no útero, vê a minha barriga crescer, abre-me inteira e retira o teu filho como um pequeno violino precioso. O pequeno violino de Mozart, que nos uniu. Faz-nos vibrar com a tua música, virtuose!”

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Saindo do Café, Gino levou-me até o Municipal, e entramos por uma entrada lateral. Ninguém nos barrou a entrada. O teatro estava vazio, estranhamente, não encontramos nenhum funcionário. Era um horário morto, para o teatro, ou então, os deuses da coxia conspiravam a nosso favor. Puxando-me pela mão, conduziu-me por labirintos desconhecidos, para mim, naturalmente. Até que chegamos ao seu camarim. Entramos, e antes que eu pudesse sequer olhar o ambiente, ele trancou a porta e começou a despir-me. Havia ali, estrategicamente, um sumiê antigo, uma espécie de divã. Nua, ele deitou-me num movimento contínuo levantando bem alto as minhas pernas, e olhando entre elas com aquele olhar que eu conhecia, de menino levado, colocou cuidadosamente a ponta do seu grande membro na “portinha” e empurrou lentamente. Eu tinha os meus tornozelos sobre os seus ombros, em posição ginecológica, e senti-me docemente invadida, como deve ser no paraíso. Ele começou a movimentar-se lentamente, a princípio, reunindo seu suco, me pareceu.
–Vem, Gino—eu exclamei–Dá-me o meu bebê !
Ele explodiu seu sêmen fecundo dentro de mim, inundando-me.
Eu estava grávida do meu amor, tive imediata certeza.

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Vânia estava inquieta. Dizia:
–Alma, você está diferente, o que é, Alma? Eu sinto, você está diferente. Você não quer dar-se a mim. Não posso tocar o seu ventre. O que se passa? Você não me ama mais? O que há, Alma? Já sei, você encontrou Gino. Ah! É isso, vocês se encontraram! O que aconteceu entre vocês?
–Vânia,–eu disse–eu e Gino temos algo muito forte, que não acaba assim, simplesmente, como você deve saber. Nunca escondi isso de você. De ninguém. Isso só diz respeito a nós dois. Não temos de compartilhar isso com ninguém, você já sabe. Você sempre soube.–eu dizia isso acariciando, instintivamente a minha barriga. Notando isso Vânia arregalou os olhos:
–Alma, você está grávida! É isso. Ele a engravidou afinal.–suas lágrimas saltavam, mas ela abraçou meu ventre ternamente. Surpreendi-me. A mulher nela falara mais alto. Ela compreendia, então, afinal. Abracei-lhe a cabeça contra o meu ventre, dizendo-lhe:
–Assim, Vânia, assim, minha amiga, meu amorzinho. Você amará também essa criança, e me ajudará a criá-la. Assim, não precisaremos separar-nos, não é mesmo?
–Sim, Alma, meu amor, meu amor. Eu já amo essa criança. Ela vem de você. Ela é você. Só posso amá-la, não vê? (e beijava minha barriga.)
Aquela noite dormimos de mãos dadas, ternamente. Tudo ocupava o seu devido lugar, eu pensava. O caos se afastava. Fazia-se a ordem natural, eu pensava assim...

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Daí a nove meses exatos, eu daria a luz ao meu bebê. Vânia segurava-me a mão ao lado do leito de parturiente, enquanto eu sofria as dores, e fazia força junto comigo. Gritei muito, me disseram depois. Eu não me lembro de ter soltado um único gemido. Não me lembro das dores. Tenho o meu pequeno violino de Mozart sobre o meu ventre, a boquinha colada em meu seio. Sinto-me plena, inundada de amor que escorre por dentro do meu seio para essa pequena flor rosada. Minha vida parece gloriosa. A vida é glória, somos todos estrelas. A vida e a Arte são uma coisa só. Glória eterna do Pai. E da Mãe Natureza, que Ele criou e que por sua vez nos gera.
Quem ousará levantar a sua voz, contra essa perfeição?


FIM


8/11/2002

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